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Nanook e o gramofone (foto de Robert J. Flaherty)

 

A DÁDIVA DO HOMEM DAS NEVES

 

(Renato Suttana)

 

(Este artigo faz parte de Póstumos - Escritos sobre literatura e cultura)

 

Assistir ao filme Nanook of the North, de Robert J. Flaherty, pode ser uma experiência única na vida de qualquer pessoa. E o será não tanto pelo aspecto exótico das imagens que nos oferece – verdadeiramente surpreendentes pela capacidade que têm de nos mostrarem um modo de vida que parece diferir do nosso numa infinidade de aspectos – quanto por uma outra coisa que está ali e que não se patenteia de modo imediato, como se se tratasse de um movimento subterrâneo que só muito devagar conseguíssemos notar. O lado “exótico” do filme de Flaherty – se a palavra não for demasiada para caracterizar esse aspecto de uma obra que se esforça por investigar e, portanto, por trazer mais para perto de nossa compreensão várias facetas de um cotidiano que difere do nosso em muito mais do que uma dúzia de pormenores superficiais – se deve à curiosidade que desperta em nós a relativa estranheza da vida esquimó, representada pelas andanças do caçador Nanook e de sua família pelos desertos gelados do Ártico. De fato, se Nanook corresponde em grande medida a alguma idéia que acaso façamos do que seja a existência de um homem que precisa extrair da caça sua subsistência e a dos seus, pensar que o faça em plena aridez dos gelos árticos suscita um devaneio em nosso espírito. E tudo o mais que se liga a isso assume para nós um reforçado interesse: sejam as técnicas de construção das tendas de gelo, seja a habilidade em converter dentes e ossos de animais em ferramentas e instrumentos de caça, seja mesmo a inesperada resistência ao frio que até as crianças demonstram, capazes estas últimas de transformarem a brancura da neve perene em objeto de brincadeiras, como uma de nossas crianças transformaria um relvado num colchão para cambalhotas ou numa arena para lutas simuladas.

 

 

No entanto para além do exótico jaz a presença mesma dessa realidade inóspita, que Nanook domina com infinita sabedoria – realidade cuja aridez impregna cada centímetro da película. E não é só isso que atrai nossa atenção. A razão para que o filme de Flaherty exerça sobre nós um fascínio que beira a hipnose está também no pensamento de que, para levá-lo a cabo, seu autor teve de se sujeitar a sacrifícios que o filme não menciona. Por outros termos, se por um lado nos são oferecidas o tempo inteiro as imagens da vida de Nanook – suas técnicas de caça, a companhia de sua esposa e de seus filhos, bem como a frugalidade rigorosa de uma existência na qual uma boa pele de urso tem certamente um valor que seria irrisório tentar atribuir, em nosso mundo, a um automóvel moderno ou a um computador pessoal de última geração –, por outro só indiretamente é que nos chegam as sugestões de que, para filmá-las, o autor se sujeitou a rigores semelhantes ou maiores que os que perpassam o cotidiano de Nanook. Desde que Flaherty não apenas registra com a câmera aquilo que tem diante dos olhos, mas se esforça para captá-lo da melhor maneira e, sobretudo, para lhe dar um sentido, pode-se supor que seu filme trate também, como um de seus temas secundários, desse mesmo esforço de captação. Podemos imaginá-lo (e aos seus auxiliares, caso os houve), a percorrer a vastidão do Norte com os instrumentos de filmagem às costas, ao mesmo tempo em que tendo de se preocupar com a sua própria sobrevivência. Não haveria um cenário a filmar, nem garantias advindas de uma clara separação entre o espaço filmado e aquele no qual se posiciona o indivíduo que o filma, como acontece nos assim chamados filmes de estúdio. Para filmar a vida de Nanook, Flaherty deve ter se obrigado a uma disciplina que lhe ensinou mais sobre a vida dos esquimós do que seu próprio filme nos ensinará. E essa impregnação nos faz pensar no quanto se trata ali não só de apenas registrar imagens e ordená-las em seqüência, mas também de um aprendizado e de uma superior ascese de caráter pessoal.

 

 

O que se vê no filme de Flaherty, datado de 1922 (mas correspondente a experiências dos anos anteriores – conforme o filme nos informa –, feitas no norte do Canadá)? Se quiséssemos falar de tudo, não encontraríamos espaço suficiente para arrolar todas as imagens que nos emocionam. Entre as que mais atraem nosso interesse está, sem dúvida, aquela em que um homem se arrasta sozinho na orla do mar, aproximando-se de um bando de morsas que dormitam na faixa onde as ondas se chocam com o gelo. O homem salta de repente, lança seu arpão amarrado a uma corda e fisga uma enorme fêmea que tenta fugir para o mar. As outras morsas se alvoroçam e se lançam na água, restando apenas um macho que não se decide entre fugir também ou permanecer junto da fêmea capturada. Embora muito ágeis e perigosas na água, as morsas se tornam lentas e desajeitadas em terra seca. Três ou quatro homens acorrem imediatamente, e então começa a luta do grupo para arrastar o pesado animal para fora da água – luta que provavelmente se estendeu por horas, pois quando o conseguiram a morsa já não se debatia. Os homens começam rapidamente a cortar-lhe a pele, colocando à mostra grossos nacos de gordura branca, que não se compara sequer à gordura do maior dos porcos jamais abatidos. Pelas aparências, a morsa pesaria o mesmo que um touro dos maiores. Os homens retalham a carne e – o que se pode ver em mais de uma ocasião durante o filme – comem-na crua, sem ocultar uma irradiante satisfação. A captura da morsa coroa um dia de trabalho bem sucedido, e experimentar depressa a carne quente do bicho teria sido, com toda a certeza, um prazer que nossos instintos civilizados hoje em dia mal poderiam imaginar. Repugnâncias citadinas perante um gozo tão excelentemente conquistado?

 

 

Outra seqüência das mais surpreendentes é aquela em que Nanook e seu grupo, parando para acampar numa região de ventos fortes, se põem a construir um iglu. Quem já terá tido a oportunidade de conhecer o modo delicado, eficiente e perspicaz como são levantadas essas edificações de gelo que, por menos confortáveis, ainda assim parecem constituir-se num dos bens mais preciosos de que pode dispor o habitante de tais paragens? Mas o trabalho deve ser realizado em grupo. No princípio, vemos os homens a cortar o gelo – massas aparentemente menos compactas de neve sedimentada –, usando para isso compridas cimitarras feitas de dentes de morsa. As cimitarras se mostram eficazes, e logo os blocos, que devem ter o tamanho de um televisor médio, são empilhados uns sobre os outros, com suas faces mais largas colocadas na vertical. Tudo depende da maneira como os apoios são arranjados. Assim, ao fim do trabalho, obtém-se uma espécie de cúpula branca emborcada sobre o solo – cúpula cujas ranhuras e reentrâncias são preenchidas com neve fofa. Num momento seguinte, Nanook espeta sua lança no gelo compacto e extrai uma crosta translúcida, que leva em direção ao iglu. Imaginamos o que está para fazer. Ele espeta sua cimitarra na parede recém-construída, rasga uma abertura de tamanho igual ao da placa de gelo e então assenta-a sobre a abertura, produzindo uma espécie de clarabóia. Como o único material a ser usado em todas as circunstâncias é o gelo, essa clarabóia também é vedada com a neve fofa. O artifício se revela proveitoso, pois permite que à luz do dia o interior da tenda se mantenha iluminado. Para completá-lo, Nanook fixa junto à clarabóia um bloco de neve opaca, colocando-o perpendicularmente à posição do sol, de modo que os raios sejam refletidos para dentro do iglu. No interior, acende-se uma fogueira, pois a diferença de temperatura entre o interior e o exterior é um dos fatores para que as paredes não desmoronem. O trenó que os cachorros arrastam é depositado no topo do iglu, a fim de que os animais não mordam nem destruam os arreios de couro durante a noite. É também providenciada uma diminuta toca de neve para os filhotes, que sem a supervisão dos humanos podem ser mortos e devorados pelos maiores.

 

 

A luta de Nanook para manter a paz entre seus cães é constante e acirrada, pois os mesmos se revelam muito belicosos. As crianças brincam com os filhotes, ensaiando em pequenos trenós de brinquedo as técnicas de que mais tarde se valerão para se locomoverem através da neve. A imagem das crianças nos faz pensar sobre um outro aspecto da existência de Nanook que o filme não mostra diretamente, mas que podemos deduzir a partir dos dados que observamos. Trata-se do fato de que essa existência não se reduz, por certo, a uma preocupação incessante com a comida e com a proteção do grupo, mas deverá ter também os seus momentos de ócio e despreocupação, bem como não estará isenta dos interesses metafísicos que, muitas vezes, entre certos povos, se manifestam nas formas da religião. O filme de Flaherty não traz nenhuma referência às crenças de Nanook ou às suas relações com os deuses. Entretanto podemos vê-lo na intimidade de sua residência temporária, preparando-se para dormir, meio nu, envolto num amontoado de peles. Uma mulher faz a higiene do filho, limpando-o com um pedaço de pele umedecido com saliva. A cama é armada sobre o gelo, e toda a família dorme agrupada no estreito espaço interior da habitação. O caçador Nanook sorri com freqüência, tem a pele do rosto enrugada e os olhos amendoados dos orientais. Não podemos, ao vê-lo, senão pensar que a existência dos caçadores seja propícia aos largos períodos de ociosidade e, sobretudo, às grandes meditações, que certamente serão inspiradas pelas intermináveis planícies brancas do Ártico. Em que pensará Nanook, para além da atividade diligente e febril a que o vemos entregue em quase todas as seqüências do filme?

 

 

Uma das cenas mais reveladores, que poderia passar despercebida a um observador interessado unicamente nas seqüências – que não são poucas – em que os homens da neve demonstram sua adaptação e sua capacidade para dominar o ambiente hostil, é aquela em que, bem no início do filme, Nanook e sua família comparecem a um entreposto comercial canadense para realizar algumas trocas. Sabemos que o comércio de peles e de outros produtos que porventura sejam trazidos das solidões geladas do Ártico pode ser para os caçadores uma fonte de produtos que não sejam facilmente adquiridos em seu habitat ordinário, tais como instrumentos de metal ou madeira. Os filhos de Nanook se deliciam comendo pão empastado de gordura, ao ponto em que um deles, tomado de cólicas, é obrigado a ingerir um laxante. O comerciante apresenta um gramofone ao caçador. O sorriso de Nanook é franco, muito alegre, e seu olhar viaja entre a câmera e aquele estranho, curioso e inútil aparelho destinado a preservar a voz humana como o gelo preserva as carnes das focas. Que pensará Nanook dessa invenção dos brancos, dessa engenhosidade infantil que não tem nenhuma serventia em seu mundo deserto e rigoroso? Que estranhos mundos lhe evocará a máquina falante, que para os brancos terá alguma serventia, mas que para o caçador não pode ser mais que uma curiosidade, tal como o são os álbuns de figurinhas para as crianças?

 

 

A espantosa inutilidade do gramofone para o caçador que se veste de peles nos fala de uma distância que existe entre os dois mundos – uma distância que é muito verdadeira e que vai além de qualquer possibilidade de que um dia um mundo venha a se interessar pelo outro ou a ter com o outro qualquer contato. Essa distância não se patenteia apenas nos hábitos e costumes que de nós para Nanook parecerão exóticos e vice-versa, mas também num certo modo que a natureza tem de imprimir a sua marca à existência dos homens, moldando-a segundo desígnios que ultrapassam as capacidades humanas de compreendê-la ou de colocá-la a seu serviço. Mas não é só disso que se trata na cena em questão. A reação de Nanook diante do gramofone – seu riso amistoso e festivo – nos lembra sobretudo a inutilidade que aquilo parece ter para o caçador, o que nos indica que os sacrifícios de Flaherty estão apenas começando. Por outros termos, o filme nada tem a oferecer ao homem do norte, e é este, por sua vez, que tudo concede à película – sua pureza de propósitos, sua luta incessante com os rigores do clima, sua sabedoria e sua habilidade em extrair da natureza avara o suficiente para a sua sobrevivência e a dos seus. Pode o nosso mundo encontrar interesse no mundo dos gelos, pode ir buscar ali algum produto que o torne valioso para nós e faça com que estabeleçamos com ele algum tipo de intercâmbio? Neste ponto, ao contrário do que se pode supor, não é Nanook que deve vir ao filme – já que este, num certo sentido, jamais terá existido para o esquimó (e podemos perguntar-nos se alguma vez o homem do Norte terá ouvido falar a seu respeito) –, mas é o filme que irá até Nanook, em busca de um interesse cuja primeira prova se dá na forma da peregrinação do cineasta pelos desertos de gelo. Essa é a dádiva que Nanook nos oferece – gratuitamente – e que oferece a um mundo que nada tem a lhe oferecer em pagamento. Tecnologia e primitivismo? Mal podemos pensar no espanto que o documentário de Flaherty teria causado aos citadinos de sua época. E mal podemos deixar de imaginar, também, o que a estes últimos teriam sugerido as cenas de vida selvagem apresentadas no filme, nas quais as intrigas, as perplexidades e os interesses que nos movem todos os dias parecem não ter nenhum lugar – assomando-se antes absolutamente primários ou vãos.

 

 

A peregrinação de Flaherty pelo Norte, seguindo os passos de Nanook, tem qualquer coisa de simbólica. É como se nos dissesse que as aventuras tecnológicas do homem moderno ainda terão de encontrar o seu norte, e que esse norte nada tem a ver com o que o mundo de hoje nos possa ofertar. Que faz o homem moderno senão exasperar-se diante de um volume de regras sociais, aspirações incertas e quinquilharias mecânicas que a cada dia cresce mais e que, no entanto, para nada mais parece servir senão para se reproduzir a si mesmo, exigindo do homem um alto quinhão que é só o preço de sua própria reprodução? Pode ser que, numa instância que subjaz às aparências, o mundo de Nanook não difira essencialmente do nosso ou que, no mais importante (caso possamos concebê-lo), suas preocupações não divirjam substancialmente das nossas. Porém é do modo como essas preocupações são tratadas e experimentadas que o filme nos fala, bem como de uma outra coisa que está para além da possibilidade de descrevê-la fora da cena em que o ato de descrevê-la seja colocado em questão. E, sendo ela a dádiva que o caçador nos oferece ou que sua presença anuncia, sem nada cobrar em troca, então só temos a agradecer.

 

 

O filme termina com uma cena em que Nanook e sua família se recolhem para dormir. Com efeito, a última tomada é aquela em que o rosto adormecido do homem do Norte se dilui contra o fundo negro, como se a nos sussurrar que depois da caça às focas, da construção dos iglus e da pesca de peixes que se congelam instantes depois de extraídos da água, viessem o repouso e o recolhimento. Pudesse ser esse também o sono que pedimos e desejamos para todos nós.

 

 

 

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