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Nicolau Saião, Iniciação 2

 

A SUPERSTIÇÃO DA FORMA

 

(Renato Suttana)

 

Suponhamos um escritor hipotético que, numa idade precoce, tomasse a decisão de se tornar escritor. Tocado pela poesia de um modo indefinido e, sobretudo, bastante obscuro até para ele mesmo, pode-se dizer que, nesse momento, poucas coisas lhe parecerão seguras. Por mais que se entregue à leitura e à reflexão, ele se sentirá no entanto incapaz de situá-las claramente no universo de seus pensamentos. À medida que envelhece, porém (e à medida que envelhece na perseverança), ele se dá conta de que uma grande parte dessas perguntas ficará para sempre sem resposta. Principalmente – para a sua melancolia – ele se dá conta de que, entre todas as perguntas que se sente capaz de formular, aquelas que ficarão sem resposta serão, sempre, as mais importantes. Ele as compreende como mais importantes, e isso a um tal ponto que com o tempo lhe vem a sensação de que envelheceram com ele. Ou ele é que envelheceu com elas, pois a sensação implica a certeza de que, com o passar dos anos, suas dúvidas e indecisões não se modificaram nem evoluíram significativamente. Apenas adquiriram um certo peso – esse peso que advém da falsa impressão, ocasionada pelo fato de que alguma coisa resistiu, inexplicavelmente, à passagem do tempo. A ilusão, portanto, do peso não pode ser mais que a decorrência de uma falsa impressão. Surge da excessiva consideração que se costuma ter para com o tempo. O peso que gera é o peso de tudo aquilo que, não se desfazendo no tempo, com o passar do tempo dá a impressão (verdadeira ou falsa) de ter se tornado fundamental. (Assim se formam as questões fundamentais e as grandes perguntas: elas nada mais são do que a projeção da impossibilidade no tempo, e se tornam mais relevantes na exata medida em que for maior o nosso esforço de responder a elas, mas, igualmente, em que for mesquinha a nossa capacidade de responder a elas.)

 

Entre tudo o que é capaz de constatar, deixa-o mais desolado a suspeita de não ser suficientemente dotado de talento para a literatura. Constata que, desejando escrever (de modo que isso toma para ele a falsa aparência de uma necessidade), não se sente devidamente aparelhado. A solução que lhe parece mais razoável é dedicar-se, então, a um exercício constante, a um aprendizado tenaz, mediante o qual acredita virá a adquirir o cabedal de conhecimentos indispensáveis à tarefa do escritor. Esforça-se e erra, e é desnecessário apontar as razões por que erra. Seu pensamento se converte em ação, e seu maior erro é supor que o exercício e a aquisição da técnica ou do conhecimento possam transformá-lo num escritor. Como suspeitamos, o equívoco e o erro caracterizam o modo como esse escritor se encaminha para a literatura, ao compreendê-la como uma forma de “atividade”. Ele acredita na técnica, ele deposita nela uma esperança e pensa poder realizá-la na medida em que se assenhoreie de um certo volume de conhecimentos. Ele não sabe, decerto, que tipo de técnica deverá adquirir, nem faz uma idéia precisa do que esteja em questão adquirir. Com efeito, ele se lança em sua demanda da técnica com a inocência feliz de uma criança. Ele se acerca do que não conhece com a mesma inocência de um menino; e nisso é comparável a um menino que, nada sabendo a respeito de um determinado herói nacional, se pusesse a ler diligentemente todos os livros de uma biblioteca, sem se dar conta, por exemplo, de que autores diferentes poderão ter opiniões diferentes sobre esse herói, ou mesmo sequer suspeitando de que, num universo de contingências, possam existir coisas tais como pontos de vista dessemelhantes ou idéias contraditórias acerca de um mesmo assunto.

 

Assim ele se torna, sem o perceber, de uma vez para sempre, num eterno aprendiz da técnica supersticiosamente divinizada. Ele não só deposita na idéia de que pode adquirir o saber necessário à realização literária uma enorme esperança, como também passa a lhe dedicar um respeito indevido. Esse pequeno escritor depõe na técnica a esperança de se tornar o que já é e também a de se realizar para além do próprio limite da técnica. Ele julga ser necessário não apenas adquirir todo o domínio indispensável para ser o que não tem garantia nenhuma de já estar sendo, como julga ser necessário ultrapassar esse domínio, tornando-se escritor para além da técnica dominada. Com tudo isso, a técnica deve aparecer para ele como um caminho a ser percorrido e, logo em seguida, como um caminho a ser abandonado. De modo paradoxal é como se ele devesse chegar não aonde o caminho o levasse, mas aonde o caminho não o conduzisse. Colocada a serviço do que não pode prover (ou seja, de uma literatura que deve ser original, no sentido de que não pode ser meramente uma realização da capacidade técnica por si mesma), a técnica se converte numa espécie de preconceito. E o preconceito passa a dominar, como um pólo magnético, todo o campo das interpretações que esse escritor produzirá a respeito de seu possível (ou impossível) talento, de sua capacidade para se tornar o que já é. Perguntaríamos, talvez, que tipo de idéia ele faz do talento, ou se é capaz de se dar consciência de que veio lidando, durante todos esses anos, com uma cisão que punha em confronto não o possível e o impossível, mas a técnica e o talento como realidades conflitantes. (O modo como ele contornou ou formulou essas questões forneceria um veio bastante instrutivo de reflexões sobre os laços que ligam um escritor à sua literatura, bem como sobre os equívocos a que esses laços conduzem.)

 

No entanto o efeito mais curioso dessa concepção de técnica é uma concepção paralela de forma literária, que se produz no limite mesmo do preconceito. Não podendo interpretar a forma como um dom gratuito da literatura – que se sustenta a si mesma sobre andaimes feitos de ar –, ele procura interpretá-la como elemento exterior, fragmentário, privado de qualquer sentido de necessidade. A compreensão da forma, fundada numa experiência duvidosa e caótica de leitura, não se liga a uma “história”, em que a forma se fecha sobre si própria e se torna imprestável para tudo o mais. É, antes, a concepção da forma como resultado de um domínio no âmbito da técnica, de uma destreza no manejo de um quimérico “código” literário, que ele crê em condições de sustentar sozinho (ou quase sozinho) toda a realização literária.

 

Vale a pena examinar alguns aspectos dessa concepção de forma em suas conseqüências para o pensamento do escritor. Primeiramente ele desenraíza a forma, separando-a daquilo que ela contém. Por causa de seu preconceito, ele não vê que a forma já é a realização literária, que não existe uma divisão entre a “forma” como entidade independente e auto-suficiente e a realização literária como subproduto de um domínio adquirido no âmbito da técnica. Para o nosso escritor, realizar certas escolhas, selecionando meios e metas, já é tão arbitrário quanto escolher entre as formas que julga estarem disponíveis no plano das possibilidades de escolha. No campo da métrica, para se ter um exemplo, ele não verá diferença nenhuma de qualidade entre um verso de seis sílabas e um verso de sete ou de oito ou outro qualquer. Desde que se estabelecem essas opções formais como puras opções formais (em plena e confusa disponibilidade), escolher uma delas dependerá apenas de uma circunstância nada clara do estado de espírito ou do acaso. Numa hipótese má, a escolha se subordinará ao mero desejo do exercício virtuosístico. Cedo ou tarde a contumácia acabará por ensinar alguma coisa a esse escritor. Sendo infinita a sua disposição ao aprendizado, mais cedo ou mais tarde ele aprenderá que existem diferenças não só entre as formas compreendidas como entidades, mas também entre os vários modos de realização formal que se lhe apresentam como modelos. Sobretudo ele aprenderá que o que tende a tomar como modelo não é o resultado de formas coordenadas de modo arbitrário sobre um espaço neutro de possibilidades, mas, sim, antes de tudo, a realização concreta de um gesto que antecede a forma pensada como forma e que a sustenta no fundo, tornando-a “possível” do ponto de vista da realização. Obviamente o caminho que leva a essa constatação é bastante árduo, e o ponto de chegada não se situa no final, uma vez que se pode dizer que ele é o próprio caminho. Tal constatação, no entanto, pode ser bastante desencorajadora para o escritor.

 

Seja como for, se atingiu esse ponto (em que a realização – já realizada – lhe parece completamente impossível), ele disporá, bem ou mal, de uma obra. E que maravilhosa transformação não se processou em seu espírito, desde que ele, sem abdicar de uma superstição, logrou convertê-la em realização que põe em evidência o seu talento, embora não o possa pôr em evidência para ele próprio! A partir do instante em que se dá conta de que já não é possível aspirar a um nível qualquer de realização (pelo simples fato de que a obra consome de tal maneira o modelo que não resta dele, nela, senão uma sombra empalidecida), não lhe resta alternativa a não ser produzir a sua própria obra. Entretanto o abismo é imenso entre o escritor “inábil” do início – a quem falta sequer um conhecimento de si mesmo que o previna de tentar percorrer caminhos que estão além de suas forças – e o escritor de agora, com a sua consciência melancólica dos erros cometidos e das impossibilidades a que se deve resignar. Como pensar essa distância e tudo o que nela se acha implicado? Não há, talvez, nenhuma diferença qualitativa no preconceito com que ainda procura acercar-se de sua própria idéia de “forma” literária. Mas pode-se notar, nele, senão uma segurança maior no trato com o literário, pelo menos uma resignação maior àquilo que, a despeito dele mesmo, se impôs à obra como um reflexo dele mesmo. Ou, antes, nessa etapa, ele não tem outra opção senão ser o que é, e ser o que é perante a obra, que não é nada mais que ele mesmo aprimorando-se no domínio infinito da forma.

 

Pode ser que aqui se corra o risco de uma distorção. O movimento que faz da obra uma realidade tal que consome a técnica em sua dinâmica interna faz ainda que se torne impossível perquirir na sua intimidade sobre o esforço do trabalho que a trouxe ao mundo. Todavia essa realidade é visível no tempo, está inserida no tempo, e se pode buscar nela (pelo menos se pode desejar semelhante coisa) a marca do tempo, que a abriu em seu seio como absoluta “novidade” e que a fecha de repente em seu mistério profundo, fazendo-a tão velha que nos espantamos de que ainda possamos interessar-nos por ela. O escritor, na altura em que se encontra, desconfia de que o que sempre buscou já tenha sido realizado, mas no íntimo ele desconfia também de que o realizou por caminhos transversos, à revelia de si mesmo. Os traços de uma destreza técnica adquirida ao longo dos anos parecem invisíveis ou absolutamente superficiais na obra realizada. Com efeito, a própria obra realizada não lhe parece encontrar-se onde ele pensa poder encontrá-la. Antes, essa mudança de posição falseia também a realidade da obra, esvaziando a técnica, coagulando-a na superfície, e entregando a obra – ao olhar do escritor – a uma espécie de exasperadora invisibilidade, como se nada de fato tivesse sido realizado. A superstição da técnica sobrevive, transposta apenas para uma outra dimensão. O escritor se vê um pouco mais sábio, um pouco mais hábil – mas lhe falta sempre alguma coisa, quer dizer, precisamente aquela confirmação que viesse unir a técnica e a verdade da obra numa unidade indissolúvel, garantindo-lhe que não foi em vão o ingente esforço despendido. Mas aqui ele nada pode fazer senão surpreender-se e iludir-se com o pensamento de que noutras circunstâncias, numa outra realidade, teria sido um escritor vitorioso.

 

É possível que, vez por outra, ele se deixe tomar por uma imensa desolação. Pode ser que, às vezes, um sentimento lhe venha de infinita repugnância. Ele poderia imaginar que, abandonando tudo, que, desistindo de si próprio e de sua obra, lhe viesse uma certa paz. Mas ele já se envolveu demais com o assunto, já se comprometeu demais e não quer abrir mão de nada, porque não saberia o que fazer de si próprio depois. Atravessado entre duas realidades – entre a idéia de ter uma obra e a idéia de que essa obra não existe –, ele conta apenas com o tempo para continuar “insistindo”. Na verdade, é como se admitíssemos que ele “conhece” demais esse assunto para ser um mero principiante (para se entregar à pura alegria do amadorismo); porém ele sabe muito pouco sobre tudo o mais para que se possa realizar plenamente, naquela dimensão em que a técnica já se encontra superada. Ele não é nem o que fez de si mesmo, por meio do estudo e do trabalho, nem a sua metade indolente ou inepta, a única em condições de lançá-lo de novo – e de novo sempre – em direção à literatura. Suas opções, sejam quais forem, não parecem exprimir-se por esses termos. Pelo contrário, elas parecem situar-se (caso existam) num outro lugar, onde esses termos não geram mais do que ilusões.

 

junho de 1998

 

 

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