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Nicolau Saião, Le mystere

 

CONVIVENDO COM OS BEST SELLERS

 

(Renato Suttana)

 

Quando se ouve dizer que um livro recém-lançado por alguma editora já vendeu o seu primeiro milhão ou os seus primeiros milhares de exemplares (cifras que geralmente se contam em dezenas), a primeira coisa a fazer é manter a calma. Muitos leitores se desesperam, julgando que, se não forem à livraria mais próxima e adquirirem o seu exemplar, se tornarão pessoas desatualizadas ou desmoralizadas diante dos outros, porém essa não é a atitude correta a tomar. Manter a calma é sempre a melhor maneira de lidar com a situação, até porque, além de nos poupar do risco de gastarmos inutilmente o nosso dinheiro com alguma coisa que não nos diz respeito, nos poupará, muitas vezes, da exasperação de concluir que, tendo-o gasto inutilmente, ainda por cima perdemos o nosso tempo com aquilo que nos aborrece ou, mesmo, que pode ser nocivo à nossa saúde mental.

 

O leitor que hoje em dia não quer se deixar levar pelo primeiro impulso que lhe ocorre de ler o que quer que seja que não foi levado a ler por decisão e interesse próprio, mas por pressão de circunstâncias que escapam ao seu controle (talvez a propaganda e a opinião alheia, com todo o poder que têm de influenciar as nossas decisões), deve sobretudo aprender a refrear os seus impulsos, a dominar os seus reflexos. Alguns exercícios simples podem ser feitos, tais como visitar padarias ou lanchonetes (ou mesmo livrarias, mas só o aconselharíamos àqueles que têm certeza de que não sairão chamuscados da experiência), que propiciam situações em que a força de vontade é posta à prova. E só então, se a confiança e o autodomínio tiverem atingido níveis satisfatórios – que podem ser testados simplesmente abrindo um livro e recolocando-o na estante sem ler uma linha sequer –, o leitor se arriscaria a ceder à tentação de ler, por exemplo, as resenhas que os jornais e as revistas publicam acerca do último sucesso editorial. Ele verá que, em larga medida, tudo não passava (antes de ter aprendido a lidar com a situação) de uma compulsão inconsciente, que pode ser vencida com esforço.

 

Não queremos dizer, certamente, que o leitor que se preocupa em ler o último sucesso de livrarias que acabou de sair da forja seja um leitor compulsivo. Muito pelo contrário: ele às vezes não será mais do que um leitor ocasional e, não raro, bastante indolente no que se refere a sair no encalço do último sucesso editorial. Trata-se, apenas, de provar também que, além de não ser compulsivo, o leitor é capaz de alguns gestos primários, tais como o de, tendo ouvido uma notícia que aparentemente deixará a todos em polvorosa, ser capaz de lidar com ela de maneira racional, sem se deixar arrebatar pela primeira sugestão que lhe vem à cabeça. Isso é, a nosso ver, algo bastante diferente da compulsão. Embora, ao que parece, o leitor desejável, em caso dos chamados best sellers editoriais, seja o do tipo compulsivo (porque eles existem, sem dúvida nenhuma), o mecanismo arrasta, muitas vezes, também o leitor preguiçoso, aquele que nem pelo último sucesso de livrarias se convenceria a abandonar o seu conforto mental. E pode seduzir também o leitor dito “exigente”, que só lê o que quer e que escolhe o que quer ler, geralmente, segundo critérios bastante insondáveis? O mecanismo os fará, tanto a um quanto ao outro, gastar o seu dinheiro de um modo que, noutras circunstâncias, eles considerariam insensato.

 

Quem compra ou lê o livro mais vendido da semana está à espera de alguma coisa, que pode ser uma recompensa pelo fato de que, não tendo lido os menos vendidos, se sentirá logrado e disposto a recuperar, por meios cômodos, o tempo que perdeu em não lê-los (se é que o perdeu). Há toda uma série de aspectos a considerar, mas o leitor se verá confrontado com estas injunções. É difícil imaginar o que é que ele procura num livro do qual apenas ouviu dizer que já vendeu o seu primeiro milhão de cópias. Provavelmente, além da curiosidade em entender o motivo de tal sucesso (que, invariavelmente, lhe passará despercebido, pois se ele chegasse a compreendê-lo seria capaz, supomos, de também escrever o seu best seller), se é que se trata de sucesso, vai nisso um outro tipo de curiosidade, que se liga ao fato de que, onde todo o mundo colocou a mão, temos também o desejo de colocar a nossa. Talvez essa justificativa não seja suficiente e não explique tudo ou não explique sequer uma parte, mas não podemos deixar de pensar que a idéia de que os livros que venderam muitos exemplares atraem mais a atenção do que os que venderam poucos depõe contra a noção de livro em geral, como se estivéssemos falando de uma outra coisa que nada tem a ver com eles. Ler um livro que todo o mundo leu é, de certo modo, participar de uma espécie de comunidade – e tudo estará bem enquanto pudermos nos manter aí dentro. E o leitor se sentirá recompensado na medida em que cumprir a sua parte.

 

Adviria daí o verdadeiro sentimento de convocação que nos invade quando lemos a lista dos dez ou vinte mais vendidos do mês ou quando ouvimos dizer que certo autor, após ter obtido sucesso (de vendas) com seu último (agora penúltimo) livro, acaba de lançar o seguinte?  É freqüente imaginar que esse outro livro deveria partilhar do sucesso do primeiro – e não sabemos bem por quê – , embora não enxerguemos as razões por que isso deveria ser assim, mas não importa. Até certo limite, o sentimento de comunidade obstrui aquelas faculdades da nossa percepção que, se exercitadas em excesso, tornariam a vida menos interessante. Levados não tanto pela inércia, mas por essa mesma obstrução, é que vamos ao encontro de improváveis surpresas que, para a nossa imaginação, são sempre as mais saborosas – verdadeiras delícias de inteligência cuja intensidade e amplitude parece estampar-se em cifras e casas decimais. Estamos entediados e não sabemos o que fazer para tornar menos penoso o passar das horas e o escoar-se dos dias, até que chegue o domingo em que nos damos conta de que não há nada a fazer para tornar mais interessante o nosso domingo? Por que não um bom livro (pois se trata sempre de bons livros) para nos ajudar a encher essas horas que, de outra maneira, ameaçariam tornar-se monótonas e insuportavelmente arrastadas, até para a menos compulsiva das mentalidades?

 

Aprender a resistir ao impulso – manter a calma e não se deixar levar pelas inspirações do momento talvez não seja aquilo que os autores de best sellers esperam do melhor leitor, tal como se, procedendo assim, o leitor desistisse da sua parte no contrato. É preciso levar as coisas a bom termo, e alguns não hesitariam mesmo em admitir que é preciso manter a “máquina” em funcionamento, o que depende profundamente de que o leitor seja capaz de tomar as atitudes corretas, ou seja, as mais decididas e instantâneas. Sem elas, nenhum sucesso de vendas se corporifica, os livreiros não podem sobreviver e os autores, sobretudo, que mais do que ninguém precisam disso para viver, não têm com que pagar as suas contas. E o que é que o leitor recebe em troca, cumprindo tão fielmente o papel que lhe cabe no processo? Não há que negar que ele recebe uma contrapartida. E, desde que a necessidade de distrair-se se tornou a regra da vida moderna, a crença é de que os livros o ajudam a obter distração. Mas, se a distração obtida com a leitura depende de que o livro lido não seja o mais sério, o mais profundo ou o mais complexo (o que nada tem a ver com sucesso de vendas e talvez não devesse ser posto em questão), e sim de que seja o mais vendido e o mais comentado pela crítica, então se pode concluir que a divulgação das listas e o esforço geral que se faz para comentar e resenhar livros nas revistas e nos jornais são melhores serviços a serem prestados ao leitor – pelos quais ele só poderá pagar ou manifestar a sua gratidão correndo a uma livraria e comprando o que importa comprar.

 

Recusando-se a ler o livro mais vendido do mês ou do ano, decidindo-se a resistir ao fluxo como quem nada contra a correnteza, ele se põe à prova em sua capacidade de resistência – e geralmente perde a partida. Manter a calma se torna, portanto, a maneira mais sóbria de dominar a situação. E, depois, talvez em seguida, pensando melhor, ele poderia tomar uma atitude mais refletida: não comprar livro nenhum, manter o ritmo dos seus passos cotidianos, ir à padaria ou à feira, sem a menor preocupação de pensar que, em algum lugar do mundo, toda uma multidão de curiosos está se fartando com alguma coisa que, para ele, não tem senão um interesse ocasional – se é que tem qualquer interesse.

 

set./2006

 

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