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OS NOVOS DEUSES - fragmento III

 

(E. M. Cioran)

 

Embora legítima a sua paixão pelos deuses defuntos, Juliano não teve chance de revivê-los. Em vez de trabalhar para isso, devia ter se aliado, num ato de fúria, com os maniqueus e, junto com eles, ter minado a Igreja. Sacrificando seu ideal, teria ao menos satisfeito seu rancor. Que outra carta além da vingança ainda lhe restava na mão? Uma carreira magnífica de demolição se abria diante dele, e ele talvez a abraçasse, não tivesse sido obnubilado por uma nostalgia do Olimpo. Não se movem batalhas em nome de uma mágoa. Morreu jovem, é verdade – depois de magros dois anos de governo. Com mais dez ou vinte à sua frente, que serviço não teria prestado a nós todos! Não que tivesse reprimido a Cristandade, mas a teria ao menos compelido a uma modéstia maior. Seríamos menos vulneráveis, pois não viveríamos como se fôssemos o centro do universo, como se tudo, inclusive Deus, girasse à nossa volta. A Encarnação é a bajulação mais perigosa de que fomos objeto. Ela nos terá concedido um status excessivo, fora de qualquer proporção com o que somos. Elevando a anedota humana à dignidade de um drama cósmico, o cristianismo nos enganou quanto à nossa insignificância, lançando-nos na ilusão, naquele mórbido otimismo que, a despeito de toda evidência, identifica o progresso com a apoteose. Mais prudente, a antiguidade pagã colocava o homem em seu lugar. Quando Tácito se pergunta se os eventos são regidos por leis eternas ou se acontecem por acaso, procura se esquivar de responder, deixando a questão em aberto; e essa indecisão representa muito bem o sentimento geral dos antigos. Mais do que qualquer outro, o historiador, confrontado com a mistura de constantes e aberrações de que o processo histórico é composto, necessariamente se vê forçado a oscilar entre o determinismo e a contingência, o acidente e a lei, a física e a fortuna. Não há desastre que não possamos remeter, conforme o quisermos, a uma distração da Providência ou à indiferença do Acaso, ou finalmente à inflexibilidade do Destino. Essa trindade, tão convenientemente aplicável para qualquer um, especialmente para uma mente desabusada, é a coisa mais confortadora que a sabedoria pagã tem a propor. Nós modernos relutamos em recorrer a ela, tal como não somos menos relutantes em esposar a noção (especificamente antiga) de acordo com a qual tanto bênçãos quanto desastres representam um total invariável que não pode sofrer modificação. Com nossa obsessão do progresso e da regressão, admitimos implicitamente que o mal muda, que diminui ou aumenta. A identidade do mundo consigo próprio, a noção esplêndida de que está condenado a ser o que é e de que o futuro não acrescentará nada de essencial aos dados existentes, não tem mais nenhum apelo. Isto, precisamente porque o futuro, objeto de horror ou de esperança, é o nosso verdadeiro lugar; vivemos nele, ele é tudo para nós. A obsessão com o advento, que é essencialmente cristã, reduzindo o tempo ao conceito do iminente e do possível, torna-nos inaptos a conceber um momento imutável que repouse em si mesmo, livre do flagelo da sucessão. Mesmo privada do menor conteúdo, a expectativa é um vazio que nos gratifica, uma ansiedade que nos conforta, tão pouco propensos somos à visão estática. “Deus não tem necessidade de corrigir Suas obras” – eis uma opinião de Celso, e também a de toda uma civilização, que vai contra nossas inclinações, contra nossos instintos, contra nosso próprio ser. Podemos ratificá-la somente num instante inabitual, num lapso de sabedoria. Vai contra, até mesmo, aquilo a que o crente se agarra, pois o de que mais se censura Deus nos círculos religiosos é Sua boa consciência, Sua indiferença à qualidade da Sua obra e Sua recusa em mitigar suas anomalias. Precisamos ter um futuro a qualquer preço. A crença no Juízo Final criou as condições psicológicas para uma crença no significado da história. Melhor ainda: todas as filosofias da história são meramente um subproduto da ideia do Juízo Final. Não importa o quanto nos inclinemos para uma teoria cíclica, a inclinação é apenas uma aderência abstrata de nossa parte; comportamo-nos, de fato, como se a história seguisse um desdobramento linear, como se as várias civilizações que nela se têm sucedido umas às outras fossem meros estágios ocupados, a fim de se manifestar e de se completar a si mesmos, por um vasto desígnio, cujo nome varia de acordo com nossas crenças ou nossas ideologias.

 

(The New Gods Tradução de Renato Suttana)

 

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