Home Poesia Prosa Traduções Colaborações Arquivo Contatos

Bem-vindo à             homepage de Renato Suttana.

Edgar Degas, Bailarinas

 

OUTRAS GARATUJAS

 

(Mauro Mendes)

 

 

A ISCA

 

Pouco te importaria o resto, se eu pudesse te dizer que sou feliz. Ao contrário, o meu silêncio te perturba e as minhas palavras quase sempre são mudas. Vê lá se não me sais uma azêmola, se não me trazes um Kuat! Louco desperdício desta hora serena em que estamos mais do que sendo três horas da manhã! Hora incerta, tempo chuvoso... Quero um amor tipo Technos, “o suíço mais pontual do mundo”, que saiba a hora de terminar e me deixe ir pelo mundo, o mundo mais pontual do mundo! ...Foi quando ouvi esta balada, a me roçar, talvez, as têmporas: “não deixes para dizer amanhã o que não podes dizer hoje”! Rude e bela, à merencória luz dos tímpanos. Ensurdeci. E o pranto meu quedoso e triste se foi sozinho a dedilhar suaves melopéias. Pão e bolor. Levedo. Na página 850 do dicionário, leio: “porro (ô). Adj. e S m. 1. (bot.) diz-se de um alho silvestre (allium porrum) cultivado como planta hortense; 2. S. m. calo que se forma no lugar de uma fratura”. Quem sabe? um verso alegre a triturar um descabefo! Enchi! O meu e o teu! Brandas auras! Todos os porros! Um amor tipo Technos, a desfolhar ao vento os sete salmos da aleluia!

 

 

 

INSÔNIA

 

A verdade de tudo quanto se diz ou se pensa não quero achar. É progressivo e firme, em mim e em ti, o esquecimento, semente de tudo que não se queria plantar. Agora, nós, separados de nós, depois e muito além de nós. O que restou (ou poderia ter restado) do passado nos devolve assim intactos, sem nenhum presságio. Existem as palavras proibidas (ou inoportunas) e as que, simplesmente, não ousamos dizer, pois só poderiam gerar idéias frágeis e, assim, sucumbem sob o peso do seu exíguo tormento. Não caberia relatar numa só página o que já coube, por inteiro, no coração, nem desvendar desavenças, nem libertar antigas tramas do seu liame forte de prender, de enredar. E quanto mais me enredo, menos penso, menos amo, mais sou minha sombra oculta, meu segundo lugar. Há muito o que sonhar e o que falta é um motivo sóbrio, que ocorra na mesma forma em que me movimento e que dirige o meu próprio pensar. Adiante jamais é um passo em vão, mas, sim, necessário à existência de quedas e tropeços, que tornam trêmulo o plano dos olhos e o horizonte do que se tem em vista. Muito tenho eu em vista e muito a te dizer, de maneira que vás surgindo, lentamente, no vazio deixado pelas palavras ao meu redor, assumindo formas que eu nem imagino, formas da mais verdadeira loucura!

 

 

 

PESQUISA

 

Desci para sondar as possibilidades de chuva. Desci do meu alto andar de vista curta e horizonte inexistente. Desci assim, assim assim, com a mão na testa, cobrindo os olhos do sol, como quem olha pra longe, querendo ver muito perto. Assim assim. Como quem põe a mão na testa, e sabe que tem a mão e tem a testa e, um pouco abaixo, tem os olhos. Assim. O que eu queria dizer hoje é muito pouco: eu, simplesmente, tinha de te encontrar e te amar e te esquecer, como hoje, em que te esqueci completamente! Mas não era assim tão simples, e esta aparente queixa não tem nenhum sentido, não corresponde a nenhum sentimento, nem presente nem passado, apenas existe vazia, vaziamente inexistente. Hoje, procuro, em vão, uma maneira de te fazer sofrer. Por nada. Só por capricho, assim como desci para sondar as possibilidades de chuva, assim como procuro, em vão, uma maneira de te fazer chover. Mas as nuvens estão muito altas e o céu muito claro. Não há nenhuma comparação, nenhuma possibilidade. Só isto: as nuvens muito altas e o céu muito claro. Não há sonhos nem saudade nem mágoas nem ressentimento. Apenas este sol, que não tem nada a ver comigo e também não há nenhuma possibilidade entre mim e esta manhã muito clara. Ela somente está aí, no meio das coisas, como eu estou no meio das coisas, como não estás no meio das coisas. Apenasmente.

 

P.S. Voltei ao meu alto andar de vista curta e horizonte inexistente. Lá embaixo, agora, a chuva cai, como uma estranha necessidade de te lembrar...

 

 

Retorna ao topo

Outros escritos de Mauro Mendes