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Francis Picabia, A noiva

 

PERFUME DE PICA

 

(Miguel Carneiro)

 

“... a marca de amor nos nossos lençóis.

nossas melhores lembranças ...”

Chico Buarque de Holanda

 

Deus criou o mundo e não esqueceu das formigas. Há pessoas nesse mundo que são semelhantes como as formigas, só gostam dos estragos e vivem devendo pelanca a gato, perto de se dizer: “Deus queira que morra!”, mas quando a boca do filho beija, verdadeiramente, a da mãe adoça. Nada nessa vida vã é à-toa, e os cornos, obra do Avesso, cumprem também o papel sobre a face da terra. Ninguém é corno porque quer e nenhum corno por mais cabisbaixo que seja aceita a admirável missão de ostentar cornos. A missão do chifrudo é titânica: ridicularizado numa porta de venda, onde ali de tudo se fala, fica o galheiro com a pecha para o resto da vida.

 

No anedotário brasileiro há diversos tipos de galheiro: “corno-manso”, “corno-revoltado”, “corno passional”, “corno-desleixado”, “corno-valente”, “corno-consciente-do-galho”, “corno-traído”, “corno-faz-de-conta-que-não-toma”, “corno-arrependido”, “corno-desiludido”, “corno-filho-da-puta”, “corno-conformado”, “corno-de-chifre-cheio”, “corno-prepotente”, “corno-de-galho-baixo”, “corno-meu-futuro-é-Deus” e por aí vai...

 

Mas não foi assim com Trazíbulo Menezes Miranda, que fora casado com Ebonina de Araújo Sales, também chamada dentro da casa de D. Rola, “Rolinha” para os mais íntimos. Os dois construíram, no passar das horas, na mamparreação dos segundos, no cair do sol, alicerce, reboco e pintura de uma longa história de oitenta anos de vida conjugal, transformando-o no romance mais belo que já se ouviu naquelas terras catingueiras.

 

Moravam numa fazenda próxima do povoado de Cachorro Sentado, também chamado de Forró, perto de Coração de Maria,. a qual tinha o nome de Recanto, e nela havia um grande criatório de zebuíno. Era uma fazenda modelo na região, Zé Maria do Couto Sampaio, renomado professor de zootecnia, fazia a chancela para que o rebanho se tornasse modelo no Brasil. Trazíbulo Miranda dono de sua caminhoneta, fabrico de requeijão, criação, cavalo bom no pisar do trote. Casara-se com D. Rola num tempo de privações, na distante década de 60, quando a seca ameaçava dizimar todo seu rebanho, a célebre estiagem de sessenta que tanto castigo trouxe para o homem nordestino, quase que o levou ao roldão. Foi aos poucos erguendo a fortuna na labuta dos dias, debaixo do sol escaldante que castiga aquele termo de caatinga povoada por facheiro, palmatória, unha-de-gato, angico, cabeça-de-frade, gravatá, jurema, quixabeira, caroá, rabo-de-raposa, calumbi e o escambau.

 

Um dia, quando percebeu que podia sustentar uma família, noivou-se de D. Rola. Após um ano de namoro se casaram na igreja do povoado de Cachorro Sentado em cujo orago se louvava a “Rose Mystique”; Nossa Senhora Acalentadora de Nossos Pecados, que em cuja igreja caiada de azul tinha suas portas talhadas em formosas almofadas no cedro que dominava a paisagem e pomposo altar dedicado a Santa Efigênia e São Benedito o casal realizava suas preces. O casamento fora oficiado no mês de maio pelo velho padre da grei Monsenhor Dario Di Ciesco, tendo como padrinhos os casais Aurino Ribeiro do Nascimento com Santinha do Amor Divino e Zuca Sodré com D. Maria Carvalho de Melo.

 

Na noite do sarrafo, Trazíbulo cavalgou Ebonina por prados, florestas e matas levando-o no tapete voador, à maneira das “Mil e Uma Noites”, descortinando vales e montanhas no galope macio do vergalho. Saciados da promenade, Trazíbulo adormeceu de tripé murcho, enquanto Ebonina imersa em sonhos ainda passeava pelos jardjns suspensos da da Babilônia. Daquela noite foi se formando a história de amor mais deslumbrante que já se ouviu contar na caatinga. Desde que rei Salomão compôs o “Cântico dos Cânticos” em louvor a sua amada.

 

O amor de Trazíbulo não se traduzia em palavras, elas traem. O amor de Trazíbulo foi se formando com gestos, delicados e ternos para um homem catingueiro acostumado a derrubar marruás no pasto e segurar uma mula braba e doida com o próprio punho dos seus arreios.

 

Nessa noite do idílio Trazíbulo foi preparando para a sua amada o seu verdadeiro presente. Após o coito, Trazíbulo se dirigiu ao guarda-roupa e de lá tirou uma caixa de lenços brancos. Trazíbulo tirava um lenço na caixa e enxugava sua amada, e ele foi também limpando com um lenço a cabeça da pica encharcada de gozo. Esse rito foi se prolongando durante cinqüenta anos de vida conjugal. E em cada lenço que era usado, Trazíbulo pedia carinhosamente a Ebonina que não o lavasse. Deixasse com a marca do amor. E assim caixas e mais caixas de lenços foram guardadas dentro do guarda-roupa, chegando a um ponto de o próprio guarda roupa só servir para colocar lenços perfumados a gala.

 

Quando comemoraram as bodas, nessa noite Ebonina desarrumou todas as caixas e cobriu o leito com todos os lenços que tinha usado em sua vida. E ali, em meio há tantos panos, adormeceram os dois, numa prova de que a fidelidade é o que sedimenta um amor, que o diga Trazíbulo.

 

 

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