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João Garção, Natureza morta com soldado e cão

 

Subsídios para o conhecimento da HIPOCRISIA EM PORTUGAL

 

(Nicolau Saião)

 

José Régio, que nasceu em Vila do Conde em 1901 e aí faleceu de ataque cardíaco em 1969, foi um dos casos mais singulares das letras portuguesas. Poeta, dramaturgo, romancista, contista, ensaísta e pensador, para além de pintor nas suas horas e coleccionador antiquário de destaque, foi também uma significativa figura cívica, tendo participado activamente na oposição à ditadura salazarista. Viveu muitos anos em Portalegre exercendo a sua tarefa de professor liceal, sendo por isso que existe nesta cidade alto-alentejana uma Casa-Museu com o seu nome.

 

Sou o responsável pelo Centro de Estudos que lhe está anexo.

 

Devido a este facto – acrescentado à minha condição de escritor – tenho-me debruçado ao longo dos anos sobre a vida do Poeta, nomeadamente as relações epistolares e literárias que manteve com escritores brasileiros como Manuel Bandeira, Cecília Meireles, Ribeiro Couto (que o visitou numa noite sobre que há relatos), José Paulo Moreira da Fonseca, Murilo Mendes, Herberto Sales, Álvaro Lins, Mauro Mota, etc.

 

Nesse contacto que estabeleci com a figura de Régio, um caso avultou, a partir de dada altura, a meus olhos: a sistemática ocultação que certas gentes têm tentado efectuar sobre a relevância do facto de ter tido José Régio uma filha de uma senhora com quem se relacionou quando ainda era estudante em Coimbra, em cuja Universidade se licenciou em Filologia Românica. Apesar de citado por destacados estudiosos da vida e da obra regiana, nunca este facto – que Régio jamais esqueceria e considerou (veja-se o seu poema “Obsessão”, dado adiante) como o mais importante da sua vida – recebeu uma atenção específica de vulto. Alguns tentaram mesmo obscurecê-lo, mediante o silêncio que se nos antolha provir da hipocrisia mais marcada. E isso consideramo-lo caracterizador da cena intelectual lusitana onde, a par dum amiguismo e dum arrivismo de pequenos jogadores, existe ainda uma hipocrisia conservadora, oriunda mesmo da parte de indivíduos que se enroupam com vestes aparentemente progressistas. Muitos deles, tentando apoderar-se do manuseio da vida e da obra de certas personalidades – como tem sucedido com Régio – não recuam mesmo em utilizar a calúnia, a injúria e a difamação, como ocorreu recentemente com alguns indivíduos punidos pela Justiça.

 

Em 2003, para além de outras iniciativas levadas a efeito em periódicos e numa estação de rádio, escrevi um poema onde encenava a situação nuclear de não ter a filha de Régio morrido e dialogar com seu pai – de forma lírico-dramática – coisas do quotidiano incarnadas a partir do que conheço/se conhece da vida e da obra do magnífico autor de “Davam grandes passeios aos domingos”, cuja figura real a partir da qual criou a protagonista desse livro, Rosa Maria, se encontra no meu texto (patente nestes mesmos “Arquivos”) “Retratos de fantasmas nítidos”.

 

E eis os poemas:

 

 

OBSESSÃO

 

Sobre umas pobres rosas desfolhadas,

Vestidinha de branco, imóvel, fria,

Ela estava ali pronta para o fim.

Eu pensava: “De tudo, eis o que resta!”

E entre as pálpebrazinhas mal fechadas,

(Como um raio de sol por uma fresta)

O seu olhar inda me via,

E despedia-se de mim.

 

Despedir-se, porquê?, se nunca mais,

Sobre essas pobres rosas desfolhadas,

A deixei eu de ver…, imóvel, fria.

Pois eu, acaso vivo onde apareço?

Lutas, ódios, amores, sonhos de glória, ideais,

Tudo me esqueceu já! Só não esqueço,

Entre as pálpebrazinhas mal fechadas,

Aquele olhar que inda me via.

 

José Régio

(in “Mas Deus é Grande”)

 

 

 

FALA DE SUA FILHA A SEU PAI JOSÉ RÉGIO

 

Sou eu, pai! Estive com umas amigas. Fui com elas

Ao cinema. Vim pela rua do Bairro Alto.

Como a cidade

Estava bela com a noitinha a entrar. Ao pé do Castelo

Um anjo rebrilhava coberto de lantejoulas

Como as dos desenhos do tio Julio.

Comeste, pai? O que é que a dona Rosalina nos mandou?

Eia, pai – jardineira! E leite-creme como tu gostas. E figos

– Num prato ratinho dos teus preferidos!

Deixa. Eu coloco na mesa. Tu continua a sonhar

Aí junto à varanda, na cadeira velha de verga.

Já reparaste?

Que de luzes que aqui se juntam! Ficam tão bem

À minha blusa amarela. Sim, tu bem o sabes, a noite vai ser longa

Mas um novo planeta nos espreita lá de cima.

Não tenhas medo, pai!

Eles não andam no quintal. Eu disse-lhes

Que não andassem no quintal, mesmo em Vila do Conde.

Logo terás, depois da música

Areias do deserto e os ventos da beira-mar. E olha

Consertei-te o coração

E o teu boneco estripado.

 

Pai: ontem um moço, na rua

Olhou para mim e eu

Pensei de repente em coisas – borboletas sobre um prado,

Um grilo tenor em alvoroço, rios correndo – em coisas que tenho

Pudor de contar a outras gentes. Que tolice, pai, não é?

Mas ele, se assim o digo, parece gostar de mim. E estou um pouco feliz.

E peço-te já versos para ele. Como os daquele príncipe

Que todo se danava se acaso a lua não vinha. O meu rapaz

Tem um sorriso esquisito

E uns olhos azuis-lilases.

 

Pai, a casa – esse navio – vai partir. Olha, ao pé, a tua estrela

Do teu menino ausente. Não te entristeças, pai. Estou tão contente!

Dá-me a tua tablete

De chocolate, dá-me a Nossa Senhora, dá-me a tua caneta

De estudante: com ela farei versos

Que tu me invejarás. Estou a meter-me contigo, pois então!

Como tu, também sei pelo caminho quais os passos

Que vão dar aos meus próprios lados. Quando dormires

Eu te velarei. E vejo-te sempre como tu me vês

Pelas pálpebras mal cerradas.

Teremos luz e calor, pai

Como tu bem mo quiseste revelar. Os deuses, coitados deles

Não terão mais remédio

Que ler teus livros inteiros. (Um dia

Pedir-lhes-ei alvíssaras.)

 

Não temas, pai. Eu estou aqui. Sempre estarei aqui. Guardo comigo

As rosas desfolhadas

E o meu vestidinho branco. E agora

Vamos, pai. Deixa lá as escritas, escreverás o resto do teu conto

Lá p’ra mais tarde.

(É sempre p’ra mais tarde que se escreve). Vamos agora passear.

 

Que a grande voz do mundo

Eu já ao longe a ouço.

 

Nicolau Saião

 

 

(As alusões que no poema são feitas têm todas a ver com eventos, passagens e referências do quotidiano e da obra de Régio.)

 

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