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Odilon Redon

 

O MEU BELO BRUMMEL

 

(Nicolau Saião)

 

Foi na tropa, na Trafaria, mais exactamente no Batalhão de Reconhecimento de Transmissões, que eu conheci o Paraíso. Não, não me refiro ao mítico Éden, que nisto de aquartelamentos não se usa ir por aí, mas ao Manuel Paraíso, meu colega de crípticas saladas militares. E não digo isto por acaso, pois éramos ambos tirocinantes lampeiros da especialidade de criptografia, esses secretos labores de cifras e maquinetas reservadas. Para quem não esteja a par do léxico soldadesco: tirávamos o curso de “material e segurança cripto”, que era a gajada que no exército fazia/faz os códigos secretos e velava para que não caíssem em mãos erradas. Estudávamos no duro não só a forma como o conteúdo dos irreveláveis cruzamentos, a psicologia da espionagem e defesa pessoal pelo meio, o que deu para termos como professor o Melo Antunes e outros oficiais que mais tarde fariam parangonas jornalísticas no âmbito da justa Abrilada.

 

O Paraíso, um moço de média estatura mas bem lançado e com uns cariciosos olhos acastanhados sob a melena pouco desbastada, tinha na vida civil depois de ter tirado as secundárias numa escola comercial a excelsa profissão de, como dizem os franceses – que em lábia linguística ninguém lhes ganha – maquereau, ou seja gigolo ou, se preferirem, acalentador profissional de corações. Já perceberam ou preciso de entrar em mais detalhes?

 

Aí ao fim duma semana de camaradagem militar, apanhando-me numa certa privacidade, dirigiu-me com vincada delicadeza um dos mais inefáveis elogios que como escritor já recebi: “Já te topei! Tenho andado a observar-te… És da profissão, não é assim?” Fitei-o um pouco surpreso: não entendia o que ele buscava dizer. E o Paraíso, voltando à carga e sendo mais explícito: “Faz-te de novas… Então! As gajas… ’tás a ver? O pilim… Também és do meio, que eu já te tirei a pinta!” Devia referir-se ao bigode que sempre tenho ostentado e que, por requerimento, eu safara (excepção feita ao tempo da recruta, que aí santa paciência ia tudo a eito) à máquina zero. E talvez, também, à minha maneira amável de falar com a malta. E, muito provavelmente, a uma saudosa e escorreita elegância na glória dos meus vinte anos, ajudada pela prática do pugilismo a sério (fui aluno de mestre Georges Gogay, campeão escocês da nobre arte). E continuando: “Pois eu tenho feito o Estoril… Bom vasilhame, safo-me com as camones e as bifas. Tu tens feito, se calhar, o Algarve, não?” Porque de facto eu não era familiar às suas paragens.

 

Não o desiludi, nem com o não nem com o sim. Um simples gesto no ar e um revirar de olhos que a nada obrigavam foram um arremedo de código com que entrei na sua camaradagem… trabalhadora.

 

O Paraíso vinha de uma estirpe valorosa: o pai era carteirista, a mãe receptava. Tinha um irmão “escalador” ao qual nenhuma fechadura de porta de vivenda resistia muito tempo. O Paraíso, porque tinha bom físico, boa conversa e uma sustância varonil, fora para chulo. Mas um chulo sério, que não se dava ao jogo pouco limpo de viver à custa das esforçadas profissionais do mais velho trabalho do mundo que, tal como eu, nunca frequentou. “Eu cá, ó Portalegre – era como ele me chamava – sou um dandy com’ó Brummel. Já ouviste falar? O mangas mais elegante de Inglaterra, fica-te com esta. Até o príncipe o invejava!

 

Resolveu introduzir-me no seu meio de específica mundanidade. E, por uma questão de cultura geral, tenho o desgosto de confessar que por algum tempo o segui nessas andanças – como que numa homenagem ao Rimbaud! Pois não foi este irmão de escritas que nos aconselhou a ir até onde as forças das letras aconselhassem?

 

O Paraíso achava que eu tinha muito futuro na profissão, mas numa tarde dum sábado, lá pelas arribas da Caparica, desiludiu-se: ”Atão tu zarpas da madama só porque a achas um camafeu? Mas que brummel és tu? Um gajo trabalhador não se põe com porras dessas… Não ‘tás ali p’ra gozar, meu mano – trabalho é trabalho, conhaque é conhaque! E tu, que tens tão boas condições!...” As condições a que o meu confrade se referia deviam ser o eu não fazer nada – porque nada sabia fazer nessas lábias de engatatão: limitava-me a ouvir as damas e a ser muito natural, porque para mais não dava a minha sabença (nula) de sedutor. Mas ele achava que isso era o máximo, uma espécie de segredo que eu mantinha como arma decisiva. E tornava: ”És um brummel que nem precisas de palheta… Atão, pronto, não te podes baldar” E sem me deixar dizer que a bifa era horrorosa: “Olha se eu me pusesse com esquisitices! ‘tava desgraçado… Mas que raio de brummel és tu?”

 

O fim da especialidade veio tirar-me de embaraços. E lá fui para Évora, até que chegou a horinha de ir para as Guinés.

 

E um belo dia, passados uns meses, lá no Café mesmo em frente da Casa da Cuf, ao pé da fortaleza da Polícia Militar e antes do Pixiguiti, quem vejo eu acompanhado de uma morenaça de se perder o fôlego? Pois o meu Paraíso, que com alegria pelo reencontro me estreitou castamente nos seus braços mourejadores. E confidenciou-me: “É a garina dum sargento… Eu estava em Nhacra… Agora estou por cá… Há por aí grandes boas sortes, Portalegre. Um brummel orientado safa-se nas calmuchas!...” Percebi o recado dos seus olhos ternurentos: estava de novo, esquecidas desilusões, a puxar-me para a má vida. Mas eu resolvera assentar. Bem…não com tanta rapidez como isso. Ai, ai, ó meu confrade Paraíso, estavas no melhor do teu itinerário de grande vindimador…

 

Perdemo-nos daí a uns tempos, nas voltas do ambiente guerreiro. Eu e a minha malta íamos cada vez mais para o mato a entregar material. E cá por coisas eu comecei a perder a vontade de aventuras daquele jaez.

 

Anos mais tarde soube dele por um colega de escritas que também lá estivera na tropa connosco e me transcrevia a memória duns jornais. O meu Brummel tinha estado encravado num confuso affaire que metia, de juntura co’a sua famelga, umas pulseiras e uns colares…(E agora que será feito dele? Qualquer dia, tirando-me de minhas tropecinhas, no milieu de Lisboa onde por causa das pesquisas sobre policiarismo conservo bons contactos entre ladrões, burlões e outros que tais – às vezes muito melhores do que certa gente séria - ainda vou palpar-lhe o rasto.)

 

Desliguei, com a saudade a bater-me nos ouvidos.

 

No fundo nunca me separei totalmente da honorável profissão – agora, no entanto, só como observador. Ou seja, folgo em ter referenciados os gigolos das letras, que por cá os há mais do qu’ó que se pensa (e nas letras é indesculpável!) e, com algum pudor o digo, não apenas no paralelo ofício de versejadores…

 

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