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O HOMEM DE CINQUENTA ANOS


(Renato Suttana)

(Páginas de um diário íntimo)

Quando um homem chega aos 50 anos de idade, ele pensa muitas coisas. Pensa, por exemplo — olhando a sua existência em retrospecto —, que poderia ter vivido uma vida diferente daquela que viveu. Supõe que poderia ter tomado outras decisões e trilhado outros caminhos, no que diz respeito à construção de sua personalidade, ao longo de seus dias. Sobretudo, imagina que poderia ter se tornado outra pessoa, caso tivesse tomado caminhos diferentes ou enveredado por outras decisões — quem sabe, até, poderia ter se tornado um indivíduo melhor.

Há muita sabedoria acumulada a esse respeito, e os filósofos escrevem sobre tais assuntos. Uma ideia que podemos encontrar nos livros é a de que, com o passar dos anos e o encurtar-se do futuro, as opções de decisão dos indivíduos, que outrora eram mais numerosas (o que dá frequentemente esse aspecto desvairado às atitudes dos jovens e às escolhas que eles costumam fazer nos diversos momentos de suas vidas) se estreitam paulatinamente, até chegar o instante em que não haverá mais decisões a tomar. Isto é válido, claro, somente na medida em que entendemos as decisões como projetos para o futuro. Do ponto de vista da existência concreta, basta saber que o futuro se encurta e que haverá menos dias a viver, o que tem consequências para o nosso modo de encarar as coisas.

Quanto às opções do presente imediato, um homem velho pode decidir-se, por exemplo, entre alternativas como sentar-se ao sol pela manhã, ou deitar-se numa rede à tarde, ou dar um passeio na praça. São opções de menor implicação e de pouca repercussão para o futuro individual, desde que não decidem aspectos mais sérios e graves da existência, tais como aprender uma arte ou uma profissão. O jovem que se decide a fazer um curso numa universidade com intenção de se capacitar para o exercício de uma profissão a ser praticada durante algumas décadas de vida (ou quem sabe até o dia de sua morte) sabe que está diante de uma escolha importante, que terá consequências enormes para o seu futuro. Muito esforço e tempo serão aplicados a essas atividades; mas, ao mesmo tempo, ele sabe também que não se encontra preparado para tal momento  — ou para o instante da decisão  —, e essa situação é bastante reveladora, no que diz respeito a determinados aspectos (que eu diria fundamentais) de nossa curta existência na Terra.

Aos 50 anos, evidentemente, já não temos tantas decisões a tomar, e o leque de nossas possibilidades se estreita sensivelmente. Há quem decida se “renovar” (termo que aqui só pode aparecer entre aspas) aos 50 (conforme dizem alguns), tomando decisões que, de certo modo, mudam o curso aparente de sua vida. Tais decisões costumam ter repercussão mais profunda, pois implicam escolhas como abraçar uma nova profissão (inclusive, cursando uma universidade), praticar uma arte ou até casar-se e criar filhos. Essas coisas não são tão simples de decidir e resolver, como pode ser simples planejar uma viagem ou tirar férias. Trata-se de decisões mais importantes, que não apenas podem alterar o curso de uma vida, como também alcançam às vezes dar um sentido novo ao viver  — isto, quando não lançam uma luz diferente (como é o caso da arte) sobre toda a etapa anterior. Elas fazem frequentemente com que esta seja compreendida como uma preparação para o novo momento, um estágio pelo qual não se podia deixar de passar. Mas é certo também, por outro lado, que, na maioria das vezes, as decisões costumam ser tomadas ao acaso ou de maneira intempestiva, o que não quer dizer que suas implicações serão menos comprometedoras e abrangentes.

No caso da arte, que nos esclarece melhor, podemos até dizer: fulano sempre teve uma “veia” artística, conforme a expressão popular. É certo que, quando tomou a decisão de se tornar artista (pintor, escultor, escritor), ele apenas deu curso à sua vocação, que esteve latente durante todos os anos anteriores. Pode ser. Contudo, ainda aqui teríamos de nos perguntar pelo que teria sido feito dessa vocação na etapa anterior, cuja força de mover o indivíduo era tão escassa que não conseguiu impulsioná-lo senão tardiamente em direção àquilo que, sob todos os aspectos, é o que afinal justifica a sua existência (ou o que ele supõe justificá-la). Estou a pensar em determinados artistas temporões, por exemplo, que, uma vez assumidos como tais, se entregam com tal paixão e tamanho entusiasmo à sua arte e à construção de sua obra, que é como se não tivessem tido de fato uma existência anterior a ela (conforme aconteceu com Gauguin ou Van Gogh) — cuja importância parece alterar a essência da sua própria personalidade.

O homem de 50 anos não pode (porque a vida não lhe dá essa prerrogativa) dizer que, depois de cinco décadas de existência, ainda é um desconhecido para si mesmo. Ele teve tempo demais para se perscrutar interiormente, para avaliar os seus gestos e se conhecer em profundidade. Talvez não lhe caiba o direito de dizer que chegou a esse ponto de sua existência sem ter aprendido o que quer que seja sobre ela. Evidentemente, se quisermos nos referir ao todo da existência, teremos de reconhecer que nem mesmo com 100 anos de vida ele avançaria muito — até porque, conforme os filósofos não se cansam de dizer, o fundo da existência é incognoscível. Em que pesem as declarações de alguns indivíduos, que ouvimos de vez em quando a propósito de situações as mais diversas, de que o fundo da vida é o nada, ou as afirmações dos religiosos de que tudo se inicia e termina em Deus, o fato é que nada sabemos sobre esse fundo, não podemos vê-lo nem sondá-lo. Antes de nascermos, o mundo já existia
, já estava aí havia uma eternidade (e aqui não levo em conta as suposições dos cientistas que dizem ter o universo uma idade de 13 bilhões de anos, o que em si mesmo já configura uma quantidade imensurável de tempo, equivalente a uma verdadeira eternidade), e depois de nossa morte transcorrerá outra eternidade, como bem lembrou Vladimir Nabokov num de seus livros.

No curto prazo de nossa vida, temos tempo apenas de adquirir alguns conhecimentos muito precários e imprecisos sobre nós mesmos, e de dominar algumas habilidades de que nunca estaremos seguros. Consumimos a maior parte de nossas energias ao longo dos anos tentando entender as regras do jogo social, ou compreender nossos semelhantes, ou exercitar atitudes decentes no convívio com os outros, e o tempo que nos sobra para sondar os mistérios da existência é verdadeiramente irrisório. A outra parte do nosso tempo nós a passamos dormindo, pois assim o impõe a natureza. Então não é absurdo concluir que aos 50 anos um homem conhece pouco ou quase nada acerca de tais mistérios, embora deva conhecer alguma coisa sobre si mesmo e sobre a realidade que o cerca. Assim não julgo incorreto afirmar que ele deve conhecer algo a respeito de sua própria personalidade, de seus desejos e motivações. Pelo menos, saberá o equivalente a esses risíveis 50 anos de vida — esse pouco que, no cômputo geral, ao menos o proíbe de dizer, sem mentir, que é um estranho à sua própria consciência.

8-6-2017

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