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Carlos Martins, A roda do destino

 

PÁGINA DE DIÁRIO

 

(Renato Suttana)

 

Saída ontem, à noite, para um passeio na rua. Havia – como se diz – uma forte necessidade de “espairecer”, até porque a melancolia do domingo pesava em excesso, gerando a necessidade do alívio. Lembremos a bebedeira (despropositada) do sábado e o mal-estar de todo o domingo, com uma vasta produção de pensamentos infecundos. Como a bebida nos causa transtorno! E o pior de tudo não é o desconforto físico (essa fraqueza medonha e crônica que persegue os bebedores contumazes), mas essa dissolução mesma dos pensamentos, essa inconsistência que os desagrega e lhes tira todo o poder de afirmar. Passei, pois, o dia às voltas com isso – a fazer leituras dispersivas pela manhã, a caminhar a esmo na tarde, etc., até que à noite resolvi sair e dar uma volta.

 

Como está ocorrendo a festa da Padroeira da cidade, havia movimento na rua. Encontrei-me por lá com meu irmão e sua esposa, mais o sobrinho, que parecia divertir-se bastante com aquele vaivém de pessoas. Miudinho, inquieto, o menino ia de um lado para o outro, enquanto os pais tentavam acompanhá-lo – tarefa improfícua, em se considerando as diferenças de velocidade que existem entre o ânimo adulto e o infantil.

 

Desci e me encontrei com V., que me chamou e encetou uma conversa. É uma jovenzinha razoavelmente bonita (um tantinho obesa, talvez), falante, que me foi apresentada há alguns dias por um amigo. Eu disse a ela que não tinha intenção de permanecer por muito tempo na rua, mas ela se espantou (como se retornar mais cedo para casa se constituísse numa espécie de sacrilégio contra sua fé de boêmia) e insistiu em que eu ficasse. Ao seu lado estavam uma irmã e o possível namorado da irmã. A irmã era bonita, franzina, incrivelmente miúda, se a comparássemos com V.

 

Trocamos V. e eu algumas palavras desinteressadas. Fiz-lhe uma ou duas perguntas, para introduzir conversa. Ela me convidou para darmos uma volta.

 

Difícil acompanhar a disposição de ânimo e o fio do pensamento de V. (se é que houvesse algum). Pusemo-nos a caminhar, fazendo giros em torno da praça. Demos duas ou três voltas, perfurando, a cada vez que passávamos, a massa de pessoas que se aglomeravam diante da igreja e ao longo das barracas da quermesse. Falávamos de tudo. V. me contava a respeito de seu final de semana, em que havia bebido muito (no sábado, se não me engano) e, aparentemente, havia se divertido em igual ou em maior proporção. Contou-me sobre uns contatos que fizera, com sujeitos desconhecidos, misturando fatos provavelmente reais com outros que tinham toda a aparência de haverem surgido de sua imaginação. Essa característica de V., conquanto não me preocupasse muito, ao mesmo tempo me incomodava e me fascinava. Era difícil “tomar pé” no que ela dizia, pois não se podia distinguir bem, em seu discurso, o que fosse verdade e o que fosse invenção. Não que eu julgasse que ela estivesse necessariamente mentindo, mas é que suas palavras criavam tal impressão, ou seja, a de que nelas o fictício e o verídico não se distinguiam com muita clareza. Se não estivesse mentindo, dizia certas coisas com tal naturalidade e despreocupação que não se podia pensar de outro modo. Além do mais, uma certa desordem, presente em suas palavras, e uma certa negligência quanto aos encadeamentos cronológicos e espaciais tornavam difícil, para um ouvinte desatento (como seria o meu caso), acompanhar-lhe o fio do raciocínio. Quanta dificuldade, para um sujeito acostumado ao labor continuado das palavras e ao escrupuloso estudo das mesmas, em se manter atento ao discurso de uma jovem tagarela de dezesseis anos de idade!

 

Evidentemente não havia má fé em minha negligência. Se minha compreensão não era boa, isso não acontecia por acaso, pois havia fatores que prejudicavam a comunicação, como o fato de estarmos dando voltas em torno da praça e o ruído medonho que emanava de algumas caixas de som que tinham sido ligadas diante da igreja. A certa altura, V. me perguntou se podíamos beber uma cerveja. Disse-me que não podia sequer pensar em cerveja, sem que lhe viesse esse desejo de beber. Convidei-a, portanto. Recostamo-nos ao balcão de uma barraca e bebemos uma garrafa, enquanto prosseguíamos com nossa conversa algo desordenada.

 

Os gostos de V.: ouvir música em volume elevado, alimentar-se bem, dançar, freqüentar as festas públicas, conversar. Assegurou-me que gostava de conversar e que, junto dela, ninguém se mantinha calado por muito tempo. Quanto a isso, lembramo-nos por acaso de F., um sujeito realmente taciturno, lacônico, que, segundo V., só dizia “o estritamente necessário”. Ela se arrepiava diante dessa idéia. Para uma faladora nata, não havia defeito pior que o costume da mudez e do recolhimento. Se F. era portador desses defeitos, então devia ter uma cotação bem baixa em seu sistema de valores. Mas evitei fazer comentários e, sobretudo, evitei ensejar uma defesa de F., o que não teria muito sentido naquela hora. Decerto, V. não entenderia se eu lhe dissesse que, ao contrário do que ela pensava, o silêncio e o recolhimento contam entre certas virtudes humanas, sendo recomendados pelos bons moralistas. Ela provavelmente não estaria interessada em ouvir uma preleção sobre virtudes cristãs.

 

Falamos sobre vestuário. Mencionei o seu gosto pelo chapéu (do tipo cowboy), que ela trazia arriado para as costas. Ela me disse que, no sábado, havia comprado um uniforme completo de vaqueira, a fim de compor o resto da vestimenta. O uniforme constituía-se de 1º) o chapéu preto, de espuma (ou material parecido), com barbela e tudo o mais, sem esquecer a medalha no alto, representando um cavaleiro montado; 2º) uma jaqueta de couro, com franjas, mais a calça, também de couro e com franjas; 3º) um par de botas de cano longo (que ela já possuía de outros tempos, segundo entendi). Para completar o conjunto, ela comprara, acredito, aquela jaqueta e a calça. Espantei-me com o preço, que achei excepcionalmente barato. Cheguei a duvidar. Ela contou uma história na qual se via a engenhosidade que empregara para obter aquelas peças a um preço tão baixo. Pechinchara, como se diz; regateara muito. O vendedor, que era também o fabricante, dissera que não podia vender por um preço menor, pois assim teria prejuízo. “É pegar ou largar”, ela contestou, fazendo uma oferta baixa. E, por fim: “Faça por esse preço, que depois eu darei uma voltinha com você...” Julguei excelente essa maneira de se encaminhar um negócio.

 

Ela me apresentou a uma certa Letícia (não me lembro do nome) ou coisa parecida, que veio até nós acompanhada de uma amiga. Pode ser que Letícia fosse essa amiga – os nomes agora se misturam em minha lembrança. Letícia era uma garota loura, de aspecto entre tristonho e desconfiado, com excelentes formas e um rosto razoavelmente bonito. A amiga era miúda (com certeza me dava pela cintura) e bastante taciturna. Cumprimentei Letícia, com três beijos nas faces. Cumprimentei a anãzinha, com três beijos também, os quais ela retribuiu molhada e calorosamente. Encetaram conversa. Letícia contou que dois sujeitos haviam aparecido em sua casa, numa hora em que ela não estava, e procuraram por ela. Isso a aborrecia tremendamente, quer dizer, a idéia de ter sido procurada em casa por dois sujeitos equipados com um belo automóvel e de ela não saber sequer de quem se tratava. Tive pena dela, por isso, se é que era possível ter pena dela. A razão para o aborrecimento estava naquela noite monótona, sem “programas”, que teria de passar ao lado da anãzinha, com todo aquele “calor” para dissipar.

 

Não me lembro do que lhe disse V. Afastei-me, para não ouvir uma conversa que não me dizia respeito. Por um momento, tive mesmo a certeza de que estava me tornando indiscreto. Disse a V. que ia embora. Ela insistiu em que eu ficasse. Teria algum encontro marcado para aquela noite? Essa pergunta um tanto absurda me preocupava. Uma insinuação de Letícia me dizia que sim. Avistamos L., uma garota que era amiga comum de V. e de uma certa V.*, com quem V. estava a ter agora algumas diferenças. Aqui um enredo. Como descrevê-lo? Lembro-me de que, há dois domingos, essa V.* me abordou na rua, numa noite tristonha (por causa de um fato esportivo ruim), e me disse que estava muito infeliz com a amiga, devido a uma calúnia que esta lhe fizera. Para concordar com V.* (e pautando-me por vagas noções de moralidade que, provavelmente, não vigiam entre essas três amigas), desaprovei o fato, solidarizando-me com ela em sua decepção e em seu desgosto. A essa altura, portanto, a amizade estava cindida, e a confiança totalmente abalada. Para não me entregar também à boataria, omitirei aqui o conteúdo da calúnia. No entanto há que dizer o seguinte: a calúnia fora feita aos ouvidos de L., a amiga atual de V.*, que incontinenti a transmitira a esta última, numa prova de duvidosa amizade.

 

Que belo triângulo de doidas. Agora, o que se achava em questão era o fato de V., na qualidade de amiga magoada (que, a propósito, não procurara se reabilitar perante V.*, negando ou justificando a possível afirmação injuriosa a respeito dessa amiga), se considerar por sua vez vítima de uma calúnia. Negava, para começar, a afirmação de L. de que ela tivesse dito qualquer coisa ofensiva sobre V.* Depois, queria tomar satisfações de L. e perguntar-lhe por que fizera aquilo, abalando daquele modo uma amizade tão firme e sincera. Era, portanto, assunto para muito bate-boca. Evitei intrometer-me e dar palpite, até porque a querela não me interessava. Imagine – tomar partido numa guerra entre comadres, cujo objetivo só Deus sabia qual era. Que tinha L. a ganhar, destruindo assim a amizade que havia entre V. e V.*? E o que teria V. a ganhar, caso L. não estivesse mentindo ou inventando semelhantes histórias que, inclusive, comprometiam a honra de V.*, além de levarem de roldão a de H., que nada tinha a ver com a questão? V. aventou a possibilidade de convidar H. para uma conversa a três e, colocando-o a par da discussão, fazê-lo confirmar a verdade ou a mentira do boato. (Aliás, não vejo bem em que H. pudesse ser útil para desfazer o nó da discórdia.) Eu disse a V. que essa era uma má idéia, pois apenas meteria H. na questão, sem que ele nada tivesse a ver com o assunto. Ela concordou vagamente, mas desconfio de que, em breve, o pobre H. também estará metido em toda essa patifaria.

 

Ora bolas! Estava perplexo, embora não aventasse nenhum comentário a respeito. Essa minha atitude olímpica era bastante inócua, certamente, pois o que eu estava esperando? Se me metesse no assunto, seria apenas mais um a boquejar mentiras e a tagarelar em torno do vácuo. Se não me metesse, passava por mais um distraído, que não se interessava pelas coisas. Para ser mais claro: se minha intenção tinha um sentido pedagógico qualquer, este se desfazia perante o interesse maluco daquelas meninas em se enredarem umas às outras numa trama de incertezas, que não conduzia a parte alguma e que servia apenas para dissipar tempo, desperdiçando-se palavras em torno de uma questão cujo fundo se falseara desde o princípio. O máximo que pude fazer foi, enfim, dizer a V. que elas tinham dado um “sumiço” na verdade e que, naquele estado de coisas, seria muito difícil reavê-la, sem que se manifestasse uma boa mea culpa por parte de alguém. Mas essa mea culpa, pelo que parecia, estava longe de ser possível, de modo que a trama ainda se estenderia por muito tempo, gerando ainda muita sujeira.

 

Pergunto-me se, frente aos boatos, é possível permanecer indiferente ou se o próprio fato de pensar a respeito deles já não é participar deles de alguma forma. Seja como for, abstive-me de dar opiniões. Como termina a história eu não sei. Perante cada um desses atores, somos levados a desconfiar do opositor. Perante V. desconfio de L. e perante L. desconfio de V. E o que dizer de V.*? E de H., o que dizer, se foi ele mesmo que, ao se envolver com essas meninas, se tornou responsável indireto por tudo aquilo? Ah, mas aqui estamos indo longe demais. E o pobre H., que nem se encontra na cidade (estamos, portanto, a falar de ausentes, para usarmos o termo jurídico), deve estar a estas horas sonhando com temas muito diferentes, com outros mundos e universos que nada têm a ver com este pequeno inferno de palavras.

 

20-7-1998

 

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