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C. RONALD PARA ALÉM DO SILÊNCIO

 

(Renato Suttana)

 

No prefácio de A razão do nada (1), publicado em 2001, C. Ronald escreveu que entregava esse livro à posteridade “como o derradeiro de uma vida dedicada plenamente à poesia”. Declarando-se “cansado da estupidez humana e da mediocridade dos [seus] semelhantes”, o poeta afirmou que se afastava deles intelectualmente “não por orgulho ou vaidade descabidos”, mas por querer oferecer-lhes o melhor de si. Hoje, dez anos depois de publicado esse prefácio, podemos constatar que esse propósito, felizmente, não se confirmou. E constatamos também que, de um modo que confirma certas expectativas que temos diante dessa poesia, alguma coisa se superpôs a ele, produzindo os diversos livros que vieram em seguida, até chegar a este Bichos procuram buracos em paredes brancas (2), volume de 448 páginas publicado recentemente pela editora Bernúncia.

 

Muito poderíamos dizer sobre o livro, a começar pelo número de páginas, uma novidade, que o torna o mais volumoso publicado até agora pelo escritor catarinense. (Na nota final, que se pode ler à página 443, o autor esclarece que o projeto conteria originalmente 600 páginas, reduzidas para o número atual por conselho do editor e por necessidade de baixar os custos da edição.) Também é inusual o fato de que o volume, iniciando-se com dois ensaios – um deles do próprio autor, que fala sobre a leitura e a vivência da poesia –, intercale, ao longo do seu desenvolvimento, textos originais em poesia e em prosa, bem como traduções de poesia e duas peças de teatro. Esse hibridismo de forma e conteúdo permitirá ao leitor acostumado às características da poesia de Ronald ter um vislumbre da sua obra por assim dizer “oculta”, aquela que, escrita em prosa ou destinada ao palco, se manteve inédita até agora, apesar de o autor não ser nenhum iniciante. (Com efeito, publicou seu primeiro livro – As origens – em 1971.) No entanto, não obstante esse caráter ilustrativo que assumirá, para o leitor, das capacidades e versatilidade estilística do autor, o livro implicará também certo incômodo e dificuldade de compreensão para quem já tenha se aventurado nos livros anteriores – dificuldade que só em parte tem a ver com o que, noutro ponto, chamei de modo reservado de ser da sua poesia.

 

De fato, todo gesto de decisão que leva uma escrita a silenciar (temporariamente ou em definitivo) – quando sabemos até que ponto essa escrita avançou no desafio de sondar as profundidades do sonho e do ser por meio da linguagem, conforme o próprio autor admite naquele prefácio – nos causa espanto e inquietação. Um escritor não deveria sustentar a grandeza de seu compromisso até o fim? Entretanto o que se tem aqui não é a persistência ou a manutenção do gesto, mas a decisão, que só aparentemente o contradita, de continuar falando para além dele, como se, depois que a linguagem se impôs um silêncio pleno que finalmente resolveu o paradoxo em que sempre se debateu de ser um discurso incessante mas contaminado por ele (processo que a atravessa de ponta a ponta, diga-se de passagem), ainda subsistisse um resíduo de fala, alguma coisa que o dizer, misturado ao silêncio, não poderia silenciar. E C. Ronald o diz, certamente – esse resíduo –, não apenas à maneira “silenciosa” de sua poesia usual (que ali comparece mais uma vez), mas na forma de contos breves, de ensaios curtos e provocativos à literatura, ou na tradução de autores que, ao seu modo, se defrontaram também com esses paradoxos do dizer (Góngora, Rimbaud, Vallejo, Crane, entre outros), ou mesmo nos escritos para teatro.

 

Numa das peças, um homem tenta ensinar a outro o significado da palavra óbvio. Eventualmente não o consegue, a não ser no momento em que o próprio óbvio – que assombra todo o curso da farsa – se manifesta como tal, mostrando que, afinal de contas, não tem importância nenhuma, muito embora seja o que há de mais importante: "GELIBOU: – Estás querendo me confundir. Pensas que não sei que lagartixa é lagartixa e aeróbica é aeróbica? / BEDEGAR: – G-l-ó-r-i-a! O que parecia impossível está acontecendo. (Corre ao encontro de Gelibou e o abraça fragorosamente.) O óbvio, meu caro, o óbvio! (Beija-o amigavelmente.)" (p. 299) Na outra peça, um significado oculto – uma espécie de mensagem cifrada – irá se revelando aos poucos diante dos olhos do espectador, de cujo sentido, porém, ele provavelmente duvidará até o desfecho (porque se trata apenas de uma hipótese).

 

Há qualquer coisa de uma alegria e de um senso de provocação quase adolescentes nesses escritos. Isso se observa, igualmente, nos pequenos comentários que, à semelhança de alguns prefácios que Ronald tem feito acompanhar os seus diversos livros de poemas, disparam contra certas opiniões que porventura estarão firmadas no espírito do leitor os petardos ligeiros da provocação (como quando sugere que o que levou Fernando Pessoa à criação dos heterônimos foi não um excesso de personalidade ou estilo, mas a simples incapacidade para desenvolver qualquer estilo). Não há como não pensar naqueles músicos que, como Miles Davis, tocam de costas para a plateia. Mas no livro o aspecto espetacular da performance está ausente, e então navegamos em direção à paisagem pontiaguda dos poemas eróticos que formam a penúltima seção (sendo a última composta por textos escritos em espanhol) e que parecem mais acessíveis às interpretações corriqueiras, mas também ali a acessibilidade tem limites. E o que dizer dos poemas em espanhol que fecham o livro? Sem dúvida, poderiam figurar entre o que de melhor o autor tem produzido, mas na breve nota que os precede (p. 429), o poeta confessa que não saberia “distinguir se os melhores momentos destes versos são originais ou apenas o emergir autônomo e irrefreável daquilo que porventura, deles, tenha permanecido no [seu] subconsciente”.

 

Na segunda seção, intitulada “Contos”, são enfeixadas 16 narrativas de curta extensão (a mais longa contendo menos de oito páginas), de temas variados, sendo constante entre a maioria delas a presença ou as imagens da morte (o que talvez forneça um indício para se interpretar o título do livro). Entramos no terreno do virtuosismo técnico talvez, mas há que reconhecer que, neste caso, a riqueza de procedimentos toma um ar de maior gravidade. Numa narrativa impressionante, escrita num clima algo alucinado de monólogo interior, somos assediados pela ideia da loucura e do desaparecimento. A cena final, formada pelas cinco falas breves de um diálogo, termina desta maneira: “– Compreendo. Acho que todos compreendem a enfermidade. É preciso perdoar, não achas? Estranho eu não estar sentindo qualquer arrependimento e tampouco diferença – eu disse – enquanto os dois enfermeiros me olhavam, preparando a camisa-de-força.”

 

Morte e desaparecimento, aliás, estão presentes também nas outras seções. Um poema como este (p. 43) poderia dar o tom do volume, não estivéssemos diante de uma escrita de caráter “prismático” e algo escarpado, levada no entanto com ironia e mão firme, a ponto de gerar no leitor uma sensação amarga e, ao mesmo tempo, catártica de sobressalto:

 

NO CEMITÉRIO DE PETRÓPOLIS

 

A sombra é simulacro do seu sangue

sob a rajada súbita do vento.

Entrou naquele bosque sonolento,

entrou naquela quadra que era mangue.

 

Não vai pro céu com menos. Sobram flores

desbotadas na queda dos estames

por fora da ferrugem dos arames

de quem ergueu estátuas sobre horrores.

 

Seria o artista frio de uma verdade,

uma mão demoníaca no lodo

modelando lembranças como um todo?

 

Teu túmulo de mãe é só saudade.

O epitáfio com datas vem molhado

pois a morte foi morta do outro lado.

 

No pequeno ensaio intitulado “Saber ler poesia”, Ronald admite a proximidade do poema com o silêncio. Reconhecendo, logo no início, que, para o leitor, “ir à poesia, que é um fato da sensibilidade, da mesma maneira que se vai à prosa é o mesmo que ir sem qualquer diferença a uma cozinha ou a um banheiro”, o autor recomenda aos leitores “famigeradamente intelectuais” que aprendam “a ler poesia com os poros e não com a vista”, de modo que, só assim, não cheguem a estragar a emoção que ela implica. Tendemos a aceitar essa defesa dos direitos do poético frente à razão, mas também somos advertidos de que “a poesia é produto da intuição captada pela perícia formal do poeta”. Ora, “se o poeta não souber dirigir a linguagem, certamente não a levará a lugar nenhum, pois estará faltando aquele plus que é a intuição, ou seja, a percepção imediata de verdades sem a intervenção do raciocínio” (p. 37). Essa proximidade da poesia com a verdade fará, por certo, parte das nossas crenças mais profundas, mas antes nos é contado o episódio de um professor amigo que ensinou ao autor que “a arte prescinde de explicação” e que se o poema “é belo sem lógica é porque a beleza não precisou dela”.

 

Ao ler um poema, é necessário senti-lo “como um todo, como se sente às vezes uma flor e não permitindo jamais que a razão interfira nesse primeiro contato”, para não se perder aquilo que ele pode despertar. Não duvidamos de que seja assim e de que a sensibilidade deve se entregar desarmada ao poema, mas como manter a clareza da distinção? Pode ser que a linguagem, nesse passo difícil (para a razão, pelo menos, pois talvez não o seja para a intuição), se revele excessivamente ambígua, esgarçada e incapaz de estabilidade. Caberia à poesia reunir as pontas no final?

 

Publicar um livro é – e sempre será – um gesto arriscado. Quem o executa corre o risco não apenas de não ser compreendido (ou de ser mal compreendido ou compreendido à revelia do que quis dizer ou supôs ter dito), mas, ainda, de se expor aos equívocos da publicidade. Numa época em que tudo soçobra no anonimato, em que a própria notoriedade não é senão um modo menos sobressaltado de se ser ninguém num mundo onde ter uma identidade se vai convertendo, a cada dia, numa espécie de delito contra todos os homens, esse é o gesto equivocado por excelência. É o gesto em que se quer dizer alguma coisa ao leitor-ninguém, e o gesto em que, dizendo-o, se diz sempre demasiado e pouco em relação à verdade, até o ponto em que se pode pensar que quem se arrisca só o faz porque perdeu o senso da direção. Mas aqui outro paradoxo se assoma: o anonimato, o silêncio que envolve o livro e que cobra, sempre, no final, os seus direitos, tem o aspecto de uma revelação. Ao lançar sobre ele – o livro – uma luz fria, dúbia, faz com que ele, de algum modo, apareça – conforme a poesia de Ronald, “invisível” e ao mesmo tempo jorrando intensa luz (esses “fogos da noite”, como lhe chamou Nicolau Saião), o tem mostrado para nós –, existindo no espaço de uma percepção transformada.

 

Mantendo uma admirável fidelidade a si própria – que já dura por quatro décadas – e perseverando na verdade daquilo que tem a dizer, a obra de C. Ronald, em seu novo livro, se deixa ver sob outros ângulos e sob perspectivas que vale a pena explorar.

 

Dourados, junho de 2011

 

Para adquirir o livro Bichos procuram buracos em paredes brancas, entre em contato com a Bernúncia Editora.

 

Notas:

(1) São Paulo: Scortecci, 2001. 308 p.

(2) Florianópolis: Bernúncia, 2011. 448 p.

 

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