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Dezembro infinito

 

 

ENTREVISTA DE RENATO SUTTANA A HENRIQUE PIMENTA ACERCA DO LIVRO DEZEMBRO INFINITO


 
HENRIQUE PIMENTA: Algo relevante — e de atual estranhamento — em sua poética: a percepção do leitor acerca do conhecimento vasto e minucioso da arte da versificação que se encontra em todas as páginas de Dezembro infinito. Além do conhecimento — maduro — da poesia brasileira, portuguesa e, também, ocidental. Eu suspeito que leitores iniciantes em poesia sintam-se constrangidos com os seus versos. O seu trabalho exige bons leitores de boa poesia. Não sei se você entende o conflito, mas eu creio que você entenda.
 
RENATO SUTTANA: O domínio formal do poema sempre foi muito importante para mim, talvez porque no início eu me sentisse inseguro. Minha linguagem me parecia desordenada, minhas incursões no universo da escrita careciam de direção. Então eu precisei aprender algumas coisas. Uma delas foi a necessidade de adquirir uma forma, um senso de organização da escrita que me oferecesse essa direção. O entendimento disso foi se consolidando ao longo dos anos. Mas eu concordo com você. Hoje em dia, reparo uma certa negligência dos poetas e dos leitores em relação ao conhecimento das técnicas e processos da poesia chamada clássica. Chega a ser preocupante, porque até especialistas em literatura — mesmo com formação universitária — não conseguem ler um verso corretamente (refiro-me a métrica e ritmo) e têm dificuldade de entender qual seja a dinâmica interna de um soneto, por exemplo. Como é que leem Camões ou Antero de Quental sem saberem escandir verso ou, pelo menos, ler corretamente a estrutura métrica dos sonetos desses poetas? Não digo isto como provocação, mas baseado na minha própria experiência de professor universitário.
 
HP: Esse é um aspecto crucial. O problema não é a sua poesia. O problema é que os leitores de poesia bem elaborada esteticamente quase inexistem. É quase um nicho prometeico. A luz incomoda. Preferem os leitores incipientes abutres petiscando fígados à luz. Eu acho que o desenvolvimento de temas humanos e humanistas que você empreende supera a dificuldade de leitura, no entanto.
 
RS: Creio (ou espero) que sim. Na verdade, nunca pus as questões da técnica do verso ou da forma poética acima dos problemas humanos e existenciais que são o assunto da poesia. Existe mesmo uma relação profunda entre eles — forma do poema e questões existenciais — que tanto pode remeter a uma ética da escrita, quanto àquilo que eu disse acerca da necessidade que todo escritor tem de conhecer o seu metiê. Ademais, acho que não é possível ser sério em poesia tentando dizer coisas profundas numa linguagem desleixada ou imperfeita. O próprio aprofundamento da questão formal já conduz a um aprofundamento no âmbito do autoconhecimento e, portanto, da questão existencial. De certo modo, é como se o existencial buscasse uma linguagem. Então, compreender a forma dá ao poeta ferramentas mais adequadas para falar da vida e da sua relação com o mundo. Porém me causa uma certa melancolia, às vezes, pensar que, se a ignorância atual em relação aos processos formais da poesia continuar se adensando, um dia estejamos todos (aqueles que se preocupam com as questões da forma) a falar para nós mesmos somente, ou para entendidos — perdendo, assim, contato com o humano em geral, representado pelo leitor comum. É ruim pensar nisso, mas é possível que estejamos a escrever para poetas ou para eruditos; e, do ponto de vista da ética da escrita, isso também é problemático, pois a obra precisa buscar a comunicação e aspirar à universalidade, não importa como. Devemos soltar as rédeas?
 
HP: Poeta que escreve para seus pares. E você tem pares?
 
RS: Não sei. Espero que sim (no que diz respeito a ter pares). Mas a experiência de escrever tem qualquer coisa de solitária, de idiossincrática até. Escrever para pares não é bom, a não ser que estejamos a escrever para pessoas que se interessem, ainda, pelos problemas que procuramos abordar. Existir é muito pesado, é como avançar por um deserto. E essa é uma experiência universal, não tem a ver só com um determinado tipo de indivíduos e muito menos com erudição. Todos existimos, todos sentimos o cansaço, a fadiga… Sobre essas questões eu tenho falado. Meu novo livro (Dezembro infinito) é como se fosse uma viagem pelo deserto, ou, pelo menos, evoca a viagem, mas com uma dupla significação: é, ao mesmo tempo, a expressão de um desejo íntimo de evitar o deserto (e a aridez correspondente) e também, por outro lado, da consciência que eu tenho de que isso não é possível, pois o deserto está em toda parte: é o deserto que conta. Os poemas que falam da “casa no deserto” dão a medida dessa ambivalência. Trata-se de uma casa interior, construída no próprio deserto. Isso tem a ver, para mim, com uma certa ética de escrever e refletir sobre a literatura em geral e a poesia em especial, tanto do ponto de vista de sua comunicabilidade (e de suas opções formais), quanto do ponto de vista de suas implicações existenciais e humanas.
 
HP: A questão da forma — como você sempre destaca — assim como de uma linguagem (e língua, língua portuguesa/brasileira) bem manipulada promove imagens (figurações), que são a essência da poesia. Sem contar apud Paul Verlaine: “De la musique avant toute chose”, colaborando para um texto multifacetado, esteticamente.
 
RS: Veja, eu sempre escrevi uma poesia muito musical, não por romantismo ou desejo de fazer a poesia coincidir com a música, como se fazia na época do simbolismo, mas porque isso me conectava melhor com o passado da lírica. Veio como um corolário ou um escólio da própria reflexão sobre a forma e do exercício formal, conforme sempre o pratiquei. Hoje em dia sinto que os poetas estão perdendo essa conexão: ouve-se muita música, lê-se muita poesia contemporânea e se torce o nariz para o passado. Não tem a ver só com deficiência de ouvido ou conhecimento insuficiente da memória lírica da língua. Tem a ver com as decisões que se tomam atualmente e com a quase unânime preocupação, perceptível em todos os escritores, em parecerem naturais e coloquiais, como se a coloquialidade fosse um valor em si. (Vejo esse tipo de posição, inclusive, em teóricos da linguagem e da literatura.) A poesia, no entanto, a meu ver, nada sabe sobre isso: ela busca uma forma, ela busca uma expressão, e a forma se consolida e ganha sentido na medida em que retrocede a um passado, a uma tradição, a uma memória. Há um entendimento equivocado, hoje, creio, do que seja tradição. Ela não é vista mais como alguma coisa que nos ajuda, que nos leva para diante, que nos põe de pé, mas como um fardo, um lastro que nos prende ao solo e nos impede de voar. Ora, o poeta precisa voar, mesmo que seja para cair, como Ícaro, no mar da indiferença, que está em toda parte.
 
HP: O seu poema, Suttana, não se reduz a um poema. Pode ter certeza de que seus poemas comovem, inclusive.
 
RS: Pode acreditar, não se trata de propor meros exercícios formais. Eu estou ali, de algum modo, e a minha vida está ali. O leitor se comoverá na medida em que também se enxergar no poema. Minha esperança é que haja, nessa poesia, espaço suficiente para o leitor — que ele não se sinta rejeitado ou excluído. É para ele, certamente, que eu escrevo, embora só escreva para mim mesmo ou sobre a minha própria experiência.
 
HP: Ah, algo que vão perguntar, quase óbvio, o título… Dezembro é o fim e, nesse sentido, o fim infinito? Ou o senhor — ateu — refere-se ao nascimento de Jesus Cristo, o baby Salvador da Humanidade?
 
RS: Sim. A referência ao mês de dezembro tem implicações. Do ponto de vista social e cultural, dezembro é o mês das mudanças, das novas expectativas. Simboliza o final de um ciclo, quando o ano se aproxima de seu término e as experiências que vivemos ao longo dele se apresentam à nossa mente como uma totalidade: afinal, o que fiz ao longo do ano que termina? — é o que muitos se perguntam. Do ponto de vista religioso, é também a época do retorno simbólico da divindade à Terra. Os cristãos falam do nascimento de Jesus, mas se trata, com efeito, de um renascimento: é como se a divindade renascesse nessa época do ano. Depois, vem o final, e um novo ciclo começa. Por outro lado, ao largo das significações culturais, dezembro é o mês em que o verão se inicia no hemisfério sul. É a época das instabilidades climáticas, em que ora faz um calor excessivo, ora desabam tempestades. O dezembro a que me refiro no título é, portanto, o dezembro do verão e do calor excessivo, da sufocação que nos obriga ao deslocamento e ao esforço de procurar a sombra. Mas aqui se trata de “ser ninguém ao sol de um dezembro infinito”, como eu disse num poema, isto é, de desaparecer enquanto personalidade, enquanto indivíduo, para ressurgir plenamente na experiência do deserto — que é interioridade e consciência. Para alcançar isso, é preciso rejeitar certas seduções, tais como a experiência da futilidade e da banalidade que o mundo do consumo e da mercadoria oferece hoje a todas as pessoas, como um (talvez o único) direcionamento que podem dar às suas vidas. A experiência do deserto é a experiência de afastar-se de tudo e mergulhar em si mesmo, num processo de dissolução que atinge a consciência de ser e de ter uma personalidade. E pode ser vivida por qualquer um, em qualquer lugar. Mas você observou bem. É o fim e o início de alguma coisa, o fim infinito ou o interminável começo.
 
HP: Deserto é fulcral na Bíblia.
 
RS: Exatamente. Além disso, pensemos em termos de geografia: dezembro é tórrido no Centro-Oeste.
 
HP: Meditação. Tentação.
 
RS: Isso. E interiorização.
 
HP: Medita-se com o objetivo de se esquivar da tentação. Eu acho que o diabo vai aparecer daqui a pouco…
 
RS: (Risos) Talvez. Mas eu não sou religioso. Embora a impregnação bíblica possa estar presente no texto (e não se pode fugir dela), estou tentando meditar sobre uma coisa que desejamos e que nos foge. Queremos o deserto, desejamos aquilo que eu chamo de uma vida íntegra, vivida em sua totalidade, com autenticidade; mas a experiência do cotidiano nos desvia o tempo todo, nos faz perder tempo com outras coisas. Gostamos de fofocas, gostamos de ir às lojas. Gastamos o nosso dinheiro com futilidades, comprando mercadorias e enchendo nossas casas de supérfluos, a despeito do quanto isso nos custe e dando a mínima para o fato de que só nos é permitido viver uma única vez neste planeta. Somos esbanjadores do tempo, para dizer a verdade. A experiência do deserto é, então, uma experiência do tempo também. É ali que o diabo nos tenta, dizendo que, se não fizermos isso ou aquilo (por exemplo, comprar um aparelho caro, na esperança de que nos dará algum prazer, sem pensar que o seu valor de uso não corresponde a um décimo do valor pago por ele em trabalho), não teremos outra oportunidade. Vivemos na era da oportunidade, da chance que não se pode perder, da janela que se abre e pela qual é preciso saltar. No deserto nada disso se apresenta. Nele, a única prioridade é viver o deserto em si, tal como Cristo o viveu ao longo de quarenta dias (e, quem sabe, de sua vida inteira), segundo consta no texto sagrado.
 
HP: Tirando a sua poesia sarcástica (e mais alguma coisinha), toda a sua poesia é intimista. E intimidadora.
 
RS: É intimista e meditativa. Não gostaria que fosse intimidadora. Aliás, um amigo notou esse aspecto intimista já há mais de duas décadas, num artigo que escreveu sobre Visita do fantasma na noite. Chamou minha poesia de intimista, e eu fiquei espantado, talvez porque o termo me sugerisse um tipo de experiência que eu não estava disposto a abordar, pois a relacionava a coisas como ocultar emoções e choramingar pelos cantos. Ora, o intimismo hoje devia significar apenas pudor e consciência do próprio lugar no mundo, da própria interioridade consciente e sua relação com a vida.
 
HP: Soltei uma ferpa.
 
RS: (Risos) Tudo bem.
 
HP: Quando cheguei à página 18, percebi novamente uma voz à porta — que não sabemos se quer entrar, ou dar meia volta. Não sei se você domina essas “repetições”. Há um eu lírico que é um viajante estático.
 
RS: Eu estava um pouco desolado quando escrevi esses poemas. Achei até que ia parar de escrever. As experiências da vida — trabalho, política, literatura — me frustravam. Ia viver interiormente num dezembro infinito.
 
HP: Referia-me, como você sabe, ao livro Quando me abriram portas.
 
RS: Esse título, Quando me abriram portas, remete à ideia do silêncio também. A imagem da porta é muito importante pra mim. “Quando me abriram portas, não passei.” Foi o que eu disse lá. Em Dezembro infinito, ainda não falo de abrir portas para o outro, mas de construir uma casa no deserto, para morar nela, ou de já a ter construído, ou de ainda vir a construí-la, no entanto com as portas sempre abertas.
 
HP: The doors of perception… Na página 20 voltam as imagens conjugadas de palha e de espantalho. Eu gosto: “seu ar de nobreza”... “o pobre coitado”... Isso é muito significativo. Como em outros poemas: “Agora fugitivo”… “os nadas da imagem”… “o equívoco da viagem”... “os círculos do olvido”...
 
RS: Há uma insinuação ética aí, de autodespojamento. Trata-se, como eu disse, do desejo de uma vida íntegra, ou de uma vida bela e belamente vivida, que é como a tenho chamado.
 
HP: Eu li — com calma ansiosa — todo o livro. Mas, de repente, apenas com os poucos exemplos citados, eu acho que já tocamos em algumas questões reincidentes e importantes de sua poética.
 
RS: Creio que sim.
 
HP: No poema “Água”, página 72, você apresenta uma voz lírica que, ao final, se transmuta — por comparação — a “um andarilho entre duas metades”. O ser humano, na sua concepção lírica, deve escolher uma das metades, deve se apropriar das duas metades, ou deve apenas continuar o seu caminho, andando entre duas metades?
 
RS: Acho que deve continuar. A escolha é impossível. A “água guardada” é um tipo de segredo, de valor íntimo.
 
HP: Me parece que o seu eu lírico considera o homem um mendigo diante da vida, diante do destino — que lhe são incognoscíveis. Nós, seres humanos, mendigamos uma côdea, mas...
 
RS: Eu estava pensando aqui, Henrique, nessas minhas referências às imagens do mendigo e do andarilho... Elas têm uma conotação um pouco ascética, talvez remetendo a toda essa tradição tanto oriental quanto ocidental da mendicância, do despojamento. Outro dia, vi um sujeito na internet dizendo que o ideal de pobreza da religião cristã é resultado de uma impregnação comunista que se infiltrou na cabeça dos padres. Achei de uma ignorância medonha, ou de má fé. E eu que nem sou cristão, que me considero ateu, tenho mais respeito pela ética dessa religião do que um indivíduo que se declara pastor? Ora, voltando ao livro: há, também, uma referência a esse aspecto da fragilidade humana, da transitoriedade, que o cristianismo percebe. Nós somos transitórios, passageiros. Então o mendigo ganha várias conotações, né? A própria poesia se torna uma forma de mendicância, porque é lançada ao mundo e fica à espera de leitores, de alguém que preste atenção àquilo que está sendo dito, como expressei no soneto “Meus poemas”, da página 77, em que recorri a uma epígrafe de José Régio: “Meus poemas requintados e selvagens...” E há outro aspecto, que você comentou antes, do ser humano como um ser dividido. Isso eu senti muito forte neste meu livro, que é a hesitação entre ficar, estabelecer um território — simbolizada na imagem da casa e do morar em algum lugar — e passar, ou seja, entre ser o andarilho e ser aquele que vai estabelecer moradia, vai permanecer. Tem um poema que fala de mim (“Dividido”, da página 50), fazendo alusão a essa impossibilidade de decidir, que é tão humana. Existe, também, um fundo cultural na referência ao nomadismo e ao sedentarismo. Nossos ancestrais provavelmente eram nômades, mas, por necessidade de sobreviver, o sedentarismo foi se impondo, foi produzindo a civilização. É assim, também, nas nossas vidas, a gente vive entre o desejo de se aventurar, de romper os laços, e a necessidade de estabelecer relações, de ficar e morar em certos lugares.
 
HP: Comente, por gentileza, se possível, acerca de seu livro, baseando-se nas três afirmações seguintes, de Massaud Moisés: “O desvendamento do real, como tarefa possível após a sua conceituação, manifesta-se de preferência no universo das palavras.” e “... qualquer prospecção que envolva conceitos, ideias ou palavras, acaba derivando para a noção de realidade.” e “... a glória do poeta é o próprio combate, não o domínio do que sabe inacessível...”.
 
RS: Outro dia eu estava pensando sobre isso. Mas não lembro mais o que pretendia dizer. Há quem diga que o fato de investigar o real já cria uma realidade.
 
HP: Pensei, na pergunta acima, que você poderia fazer uma relação da poesia com a realidade. Porque, de certo modo, a poesia é uma tentativa de materializar o que há de impossível na realidade. Investigar, no entanto, o real já é poeticamente uma realidade. Quando, por exemplo, você faz um poema acerca da transitoriedade da vida, você já está materializando os problemas que quase todos os seres humanos possuem. Seria essa, portanto, a única realidade possível quanto a esse tema.
 
RS: Exatamente. Mas a poesia trabalha com o imaginário. E o imaginário se descola facilmente do real, se é que não o inventa. Acho que é disso que Massaud Moisés está falando.
 
HP: Fiquei decepcionado com a sua resposta...
 
RS: Vou tentar responder, seguindo um outro roteiro, um roteiro menos decepcionante... Pois, bem, sobre essa questão que você levantou (da relação entre poesia e realidade), posso dizer o seguinte: a poesia não é só uma forma de expressão da realidade. Ela é principalmente um modo de descoberta e de compreensão dessa realidade, que sem a poesia permanece obscura para a consciência. Não é que a poesia possa esclarecê-la, mas a gente deve reconhecer que a literatura sempre lança alguma luz sobre as situações da vida e nos ajuda a ver melhor o nosso lugar no mundo. A luta com as palavras é, então, um combate em prol dessa luz, que pode ser mais ou menos brilhante na medida em que conseguimos dar a ela um sentido e uma direção. Acho que é a isso que Moisés se refere quando diz que “... qualquer prospecção que envolva conceitos, ideias ou palavras, acaba derivando para a noção de realidade”. Nesse sentido, construir linguagem é construir realidade — uma realidade nossa em que nos vemos e nos damos a ver.
 
HP: Voltando à questão da forma, seria interessante retomarmos a ideia, debatida em outra ocasião, de seus versos livres serem “contidos”. Pode falar sobre isso?
 
RS: Ok. Retomando a ideia de que eu escrevo versos livres “contidos”: sim, é um modo de ver a questão. Mas cabe observar que eu tenho praticado o verso livre desde o começo, tanto quanto o verso medido. Assim, as duas coisas para mim sempre andaram juntas. Mas o problema que encontrei, ao longo dos anos, foi evitar que o verso livre desandasse para a prosa ou, por meio dele, fazer passar uma prosa descontínua como sendo poesia, traficar essa coisa. As palavras não podem cair no verso de qualquer maneira, é o que penso, ou entrar nele a qualquer custo. É importante que o poeta esteja atento a isso. Então, a solução foi praticar um tipo de verso livre “controlado”, por assim dizer, escrevendo um poema em que cada verso teria a sua própria “medida”, calibrada de acordo com a sua posição no conjunto, para produzir um sentido de ritmo. Não estou falando aqui do chamado poema polimétrico, no qual os versos são escritos em métrica variada, mas de acordo com os modelos consagrados, que têm até nomes (decassílabo, redondilha, octossílabo, etc.). Trata-se de versos livres mesmo, que não sugerem ao leitor a ideia da escansão, da contagem de sílabas. Esse é o diferencial, e exige tanto cuidado e atenção quanto escrever em versos medidos.
 
HP: Suttana, eu gostaria de dizer que adorei a carga imagética que você imprimiu ao poema “Do chão”, que está na página 81. Cara, eu leio e releio esse poema como se estivesse assistindo a um filme. No mais, para confirmar a excelência de sua poesia, eu elegi “diversos” melhores poemas no decorrer de todo o livro. Meus parabéns! E, para finalizar, por gentileza, me mate uma curiosidade... Por que você usa tantos travessões e parênteses em seus poemas? Tem consciência desse “abuso”? O que quer sinalizar com isso?
 
RS: Obrigado por essas afirmações. Quanto às perguntas, é o seguinte: sim, tenho consciência, e o “abuso” é intencional. Veja: os sinais de pontuação são uma invenção excelente. São recursos que ajudam muito a melhorar a compreensão de um texto, e quem os pôs em circulação ao longo dos séculos teve uma inspiração incomparável. Mas às vezes eu sinto que eles — os sinais tradicionais — não são suficientes. Há uma necessidade de sugerir outras nuances, outros tons no recorte das frases, que os sinais comuns não dão conta de sugerir. Então recorro ao uso do travessão para esse fim, muito porque é um sinal gráfico de múltipla valência, que tanto pode substituir vírgula, como pode funcionar como parênteses, aspas, ponto e vírgula e outras coisas. Às vezes, me dá vontade de fazer como a Emily Dickinson, usar só os travessões, sem mais nada. Mas acontece que também gosto da frase bem pontuada, de recorte nítido, com cada coisa no seu lugar. Aí, o jeito é apelar para o meio termo, simbolizado pelo travessão: não tanto a frase “despontuada”, como alguns a praticam hoje, mas também não tanto a frase excessivamente pontuada, como se o poema não estivesse sempre em véspera de explodir e extravasar todos os limites que essas coisas tentam demarcar.
 
Campo Grande e Dourados, agosto de 2023


 

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