Home Poesia Prosa Traduções Colaborações Arquivo Contatos

Bem-vindo à homepage de Renato Suttana.

Lucien Freud, "Olhos fechados"

 

Anacrusa

 

(Maurice Blanchot)

 

Contentar-me-ei (palavra desde já inadmissível pelo que sugere de satisfação) com procurar ouvir de perto o texto de Lyotard intitulado «O sobrevivente», e ao mesmo tempo ir meditando sobre os poemas publicados e assinados por Louis-René des Forêts.

 

Onde fica o começo? Será alguém ou algo que começa?

 

Temos a resposta de Hegel: a morte é a vida do espírito. «O espírito não sobrevive à morte, ele é o render[1] da vida imediata…o espírito vive enquanto morto para a instância que ele mesmo FOI… A formação anterior já não está viva.» Donde resulta, e é muito importante, que: «A entidade que fui já não pode dizer eu». «Eu» já só pode dizer-se ENTÃO, na terceira pessoa. É assim que Hegel chega ao «nós» (nós, quer dizer eu então e eu agora). Desta feita, nada se perde. A morte é sempre uma bela morte, pois que «retida» neste «nós» que formam em conjunto o eu então e o eu agora.

 

Mas será que verdadeiramente nada se perdeu? O que necessariamente se perdeu foi a presença «viva» ENTÃO do que AGORA é. A contingência está perdida, e podemos duvidar da presença do «então». E o próprio tempo, que se reduz ao render de um modo por outro modo, está perdido. Certamente que o voo da coruja significa um começo que garante a sobrevivência do todo, a transmissão do todo, excepto o «vivo» e aquilo que foi então presença tornada ausência ou que sempre foi ausência. Não podemos escapar à tristeza da coruja, tristeza que o próprio Hegel foi o primeiro a sentir e da qual fez o seu luto. Mas será possível o luto? Por culpa ou graças a Hegel, pressentimos que aquilo que no presente parece tão vivo precisou necessariamente do já morto. A isto chama Lyotard melancolia e outros chamam «niilismo».

 

Mas se o começo não é o fim, se pensamos o nascimento como uma morte, e a morte como um nascimento sem «verdade», porque razão há um duplo não-ser? Porque não-ser como nascimento e não-ser como morte?

 

É um enigma, e o enigma do começo revela que HÁ uma relação com o que não tem relação. Nascimento que não é só melancolia mas infinitamente mais doloroso do que a morte. Assim nos «Poemas de Samuel Wood»:

 

Olha diz-te que nos dois extremos do percurso

É a dor de nascer que é a mais violenta

E que dura e se opõe ao medo que temos de morrer.

Diz-te  que não acabamos de nascer

Mas que eles, os mortos, acabaram de morrer.

 

«Diz-te». Trata-se pois de uma história, uma história que conto a mim próprio ou creio contar, enquanto são os outros que a narram (mas quem conta a história, no caso de eu ser uma criança abandonada? E , segundo Freud julgo sempre que o sou). Esta perda vinda de uma história que revoga o imediato é uma primeira dor (supondo que as dores se deixem contar). Mas uma outra dor (e contudo a mesma) é a lembrança de «Esta pátria nada de onde fui indevidamente arrancado» («As megeras do mar»). E ainda uma outra (mas será a mesma?):

 

Diz-te  que não acabamos de nascer

Mas que eles, os mortos, acabaram de morrer.

(Poemas de Samuel Wood)

 

Portanto, a exigência de um começo que é dor extrema, na medida em que é apenas um «talvez» (ilusão contudo incontestável), ameaçada de destruição sem ter sido, ou incapacitada de chegar ao fim, esta exigência está longe da morte reparadora que Hegel nos faz esperar.

 

Exigência, enigma.

 

A criança, arrancada à mãe (arrancada àquilo que crê ter sido uma união imediata) que a expulsa prematuramente (e não sendo suficientemente crescida para a existência no mundo é já demasiado crescida para a imediação materna, para a «mátria»)[2], a criança simboliza o começo no entre-dois. Conseguiu superar o enigma de estar-ali, apresentando aos outros a vivacidade de uma presença espantosa mas, na própria vivacidade, EXPIA a presença, nas decepções, nas questões vãs, no silêncio alcançado e ao mesmo tempo perdido. É DEVEDOR do começo (diz Lyotard), e não pode saldar a dívida (porque não pode contentar-se com ser um herdeiro, por muito filho de «rei» que seja), não pode pois parar de nascer, MANDATO de nascença.

 

Contudo aparece como um «dom sublime», «a oferta sublime»[3], mas para OUTREM, não para ele mesmo, a não ser talvez quando é atravessado pelo enigma do começo como por aquele relâmpago do qual jamais esquecerá que o deixa no terror da cegueira.

 

Aquele que diziam ser um rapaz intratável

 

«Intratável» em si mesmo ou intratável porque o diziam tal? E «intratável (para quem o dizia) exprimia ora uma reprovação, ora um elogio. E já não é para si mesmo um puro intratável se o for somente para aqueles que assim o dizem.

 

Resta: porque nascer? Porque não acabamos de nascer? Porque será que nos resta para lá do próprio fim (e o fim é mesmo o não ser absoluto), algo como uma inicial? É que inicial é antes de mais a capacidade de julgar, de dizer não à abjecção (ou de dizer sim ou não), é o PODER DA LIBERDADE. O homem MADURO que a meio da noite dá por si a ser julgado pelo «rapaz intratável», e julgado por estar comprometido e não ter cumprido devidamente a promessa, esse homem é ainda precisamente aquele que não pára de nascer, de nascer na dívida silenciosa que continua a sentir em relação ao não-ser perdido: nascer (namser) sem sobrevida.

 

A não ser pertencendo ao velho mundo dos sábios, diz Samuel Wood. O Sábio é o homem satisfeito, de Hegel; aquele para quem deixou de haver questões, uma vez que pode de modo definitivo responder a tudo, não querendo, não desejando, não mudando nada já. Está morto sem precisar do Outro (outro que lhe dá a mão e o acompanha até à morte). O Mesmo absolutamente mesmo.

 

Mas, para o não-Hegel, restam questões, palavras, silêncios, e também o sol radioso, os gritos dos pássaros, cantos que escapam à necessidade infernal da linguagem, a ledice das criaturas do céu, música onde, pela anacrusa, se sustém o silêncio do que ainda não se ouve ou que se vai ouvir naquilo que não se ouve.

 

Quantas vezes ainda sonhar com uma linguagem

Não escravizada pelas palavras…

 

… e não renunciar à memória do desejo de abraços silenciosos (talvez aquilo a que Levinas chama «carícia»).

 

Isto é dito e quase não dito.

 

Nas «Megeras do mar», há esta afirmação categórica: porque ser e já não ser são uma maldição igual. Nos «Poemas de Samuel Wood», o não-ser de onde se nasce e o não-ser onde se morre têm um igual sentido e não-sentido, e além disso a persistência, a continuação da absoluta descontinuidade.

 

Em «As megeras do mar»:

 

E na minha memória dorida que é tudo o que tenho…

 

Memória que, longe de Proust, não tem salvaguarda: Nada, não ter memória de nada, nem mesmo conhecimento da própria morte?

 

E finalmente, condenação ou anulação duma narrativa que não guarde o memorial do percurso do não-ser ao não-ser.

 

Mas não há memorial para quem desmente o seu percurso.

 

Nos dois poemas (separados no entanto pelo Acontecimento desastroso) encontramos o mesmo processo ou antes o interminável processo.

 

E na minha memória dorida que é tudo o que tenho

Procuro o lugar onde a criança que fui deixou as suas marcas.

 

As marcas: rastos não daquilo que teve lugar mas do que jamais se passou. E eis o que nos mantém afastados das recordações de Proust, recordações involuntárias, reavidas gloriosamente e aptas a afastar a morte através da arte ressuscitada.

 

Ainda rastos:

 

Sob o arco intemporal onde reina a toda-pura nulidade

E mais ausente na própria ausência dos meus rastos…

 

Há contudo um processo, comparência (sempre «As megeras do mar») da criança perante a que já se tornou outra criança:

E houve para despertar este mau tormento de infância

Esta outra criança enamorada do mesmo tormento secreto…   

 

Confronto que, sem se repetir, toma nos «Poemas de Samuel Wood» a forma mais irrecusável do processo sempre antigo, sempre novo.

 

Aquele que diziam ser um rapaz intratável

Vir agora julgar o homem que o traiu.

Mas antes admitir a culpa do que à laia de defesa

Valer-se duma sabedoria adquirida.

 

(correndo o risco de aceitar a paz melancólica de Hegel)

 

Mas porque é que a criança o atormenta? Porque que é que se transforma em juiz? É que enquanto criança sempre para nascer, o poder de julgar e de ser livre ainda lhe pertence, denunciando a impostura dos tiranos da infância.

 

E também porque o juiz e o arguido continua a ser a mesma criança a quem é impossível suavizar o olhar justiceiro, com o coração que não perdeu o seu jovem orgulho, a sua arte que consiste em dissimular os pontos fortes, a lucidez, seu trono de prazer donde «ele» deve (sem saber quem é este ele) recomeçar a ouvir, a pronunciar o veredicto.

 

Não lhe chegámos ao cabo com a idade.

 

É (de novo) o enigma, o enigma da estranheza da infância — infância que do enigma sabe mais pois nenhuma resposta lhe convém, pronunciando  em voz alta — a voz arrebatadora, arrebatada ao silêncio que nela sempre se retém — o NON SERVIAM, recusa gloriosa no aquiescer da extrema aflição.

 

Não querendo, não podendo terminar, invoco para já a palavra de um Mestre hassid (que sempre recusou ser Mestre), Rabi Nahman de Bratslav:

 

«É proibido ser velho»!

 

O que se pode começar por entender como: proibido renunciar à renovação, proibido contentar-se com uma resposta que deixaria de por em causa a questão — escrever afinal (mas é sem fim) apenas para apagar o escrito ou mais exactamente escrevendo-o através do próprio apagar, mantendo juntos o esgotamento e o inesgotável: o DESAPARECIMENTO que não se extenua.

 

Chegou assim ao ponto de escrever o Livro Secreto apenas para o queimar, tornando-se célebre como o autor do «Livro Queimado»[4].

 

Mas será este o inconveniente de uma glória mística onde mesmo sem se humilhar nem se exaltar, ele dá a si mesmo a possibilidade de um fim soberano.

 

Creio que Louis-René des Forêts recusa esta possibilidade. O não-ser final não pode impedir que o nascer se continue, quer dizer que FIQUE ALGO sempre por nascer, nascimento em dívida de si para consigo, que  deve a si mesmo o silêncio falhado ao fazer um voto, mas um silêncio através do qual, mesmo falhado, se mantêm o dom da graça e a graça do dom, o riso, as lágrimas, a selvajaria e talvez até a SORTE, se bem que esta chegue atrasada e não sirva, precisamente porque só é sorte escusando-se e recusando-se a qualquer uso e a qualquer serviço.

 

Não esqueçamos que os poemas são atribuídos a Samuel Wood. Será isto uma ficção para fazer recair a responsabilidade sobre outrem que deste modo seria o real da irrealidade? Será uma outra voz que o autor só ouve de tempos a tempos, ou da qual foge para que o seu segredo não seja revelado, nem ditas as verdades mais profundas e mais desastrosas? Se por um lado nunca há resposta definitiva mas só contestação perpétua, por outro fico surpreendido com alguns momentos quase de paz onde o negativo não triunfa. É o caso destes três versos que parecem pôr de lado a tentação do niilismo:

 

Não, é qualquer coisa de outro modo obscura,

A ternura que faz embargar-se a voz

O dever da amizade vigilante.

 

E depois os dez versos fortíssimos e de uma grandeza inigualável do «fim» onde se presta homenagem a uma voz vinda de algures (talvez a de Samuel Wood ou a do sem-nome) fora do alcance do tempo e do desgaste; uma voz que mesmo sendo tão ilusória como um sonho, há nela algo que perdura / Até mesmo depois de se ter perdido o sentido e porquê? É que o seu TIMBRE (sublinhado meu) vibra ainda como uma trovoada / Da qual não sabemos se se aproxima ou se se vai.

 

*

 

Voz, timbre, música. Será que através destas palavras se abre a questão sem resposta do CONTRATEMPO? Contratempo: mesmo que o entendamos de forma não subjectiva, poderá aparecer-nos sob diversas formas. Para começar e de novo: Hegel, se de acordo com ele só no final e, na morte e pela morte, no nascimento, podemos reaver conceptualmente o começo: contratempo que suprime então o carácter imediato do tempo e ali se suprime também na melancolia da extrema satisfação.

 

CONTRATEMPO: talvez, diferentemente, seja a espera de um voltar atrás, por meio de uma retrospecção onde se ilude um presente já sempre perdido, pois que nunca foi.

 

Volto-me enfim para a experiência tão misteriosa e tão mal elucidada de Louis-René des Forêts da qual expus apenas alguns poucos fios. Se nele a felicidade, a infelicidade de nascer, está sempre subjacente ao ser que se desenvolve julgando afastar-se, a tal ponto que (prosseguindo-se sem fim o nascimento fica sempre para além) podemos considerar que o silêncio do infans é sempre a precessão da palavra, e também que o não-ser não se deixa abolir no ser, mesmo quando parece conjugar-se com ele no terrível vaivém do HÁ (o ser crê recuperar o não-ser, mas o nascimento em seu não-ser obstina-se — Ostinato — sem ter ainda revelado o seu segredo).

 

Recorrendo a um termo que data da antiguidade grega, e que tomou um sentido técnico (aliás mal fixado) durante o século XIX, tentaria entender a experiência (o contratempo) de Louis-René des Forêts como uma espécie de anacrusa. Para os gregos, a anacrusa é um simples prelúdio, tocado por exemplo na lira. Nos exemplos do século XIX, torna-se mais complexa: no primeiro compasso, o inaugural, nada se ouve ou ouve-se  apenas um som tão fraco que parece estar em falta e assim dura sem duração ou dura mais do que dura, de modo que depois dele ou a partir dele a nota por fim tocada se eleva até atingir um brilho prodigioso, um brilho de tal modo intenso que só lhe resta cair de novo no silêncio. Deste modo o antes e o depois deslocam-se e não se fixam em lugar determinado sem que o ouvido atento dê pela confusão.

 

Assim o augural da primeira ou extrema infância experimentou — no primeiro compasso — um silêncio-grito, ainda animal e contudo já humano. Manterá o emblema deste primeiro silêncio (mas seria este o primeiro? Não haveria ali no antecedente do não-ser — a pátria ou a mátria nada — uma comunicação silenciosa do mais íntimo e do mais reservado?), silêncio ao qual ele é VOTADO e do qual, por meio de um impossível desafio, se faz um VOTO. Silêncio que, concertado na música, vai aqui inexplicavelmente romper-se no ímpeto sublime duma voz coral tão bela (mas já não se trata de beleza) que em seu redor o silêncio se refaz de modo a que não haja nada mais a ouvir do que ela na sua escalada vertiginosa, e ele volta a cair tão absolutamente neste silêncio que hão-de ser vãs as suas tentativas para reencontrá-la na retroversão da lembrança loucamente perdida[5].

 

Daí o tormento talvez «demencial» de uma aparição que preludiou o desaparecimento. Contratempo que a habilidade do contracanto imitará em vão.

 


[1] «La relève», em francês, é a escolha de Blanchot (e também de Derrida) para traduzir o conceito hegeliano de «aufhebung». (n. do t.)

[2] Remeto aqui para o excelente estudo de Dominique Rabaté: Louis-René dês Forêts: la voix et le volume, Ed. José Corti.

[3] Vide Jean-Luc Nacy, Le Sublime, Belin

[4] Remeto para o livro de Marc Alain Ouaknin, intitulado precisamente Le Livre brulé (Ed. Lieu Commun), livro que não trata somente de literatura hassidica mas constitui também uma notável introdução à leitura do Talmud.

[5] No canto falado (Sprachgesang) que encontramos na nossa época sob a forma particular de entrada de vozes, a primeira nota é produzida–não produzida, mantendo-se os lábios fechados, a segunda nota com a boca entreaberta, começando e parando como um sopro; a terceira nota que coincide com a primeira palavra do poema é também a primeira a ser cantada, emergindo com uma força redobrada pelo facto de ser a primeira a abandonar a esfera não musical. Houve então como que uma reticência (uma vergonha?) em cantar, em reconciliar canto e palavra e a «palavra com a boca fechada», silêncio ainda e silêncio que se entoa, se faz timbre na voz. Do mesmo modo em «Une mémoire démentielle», o menino de coro, sem renunciar ao mutismo, começa por cantar somente sem cantar, mexendo apenas os lábios ou mimando somente o esforço vocal, até ao momento em que se deixa arrastar ao canto por uma escalada vertiginosa, por um vento desabrido, uma fulguração que atinge uma altura que ultrapassa os próprios céus, até à suspensão que culmina no fim.

 

(Tradução de Sephi Alter)

 

 

Retorna ao topo