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Juan Gris

 

Poemas de Antonio Reseco González, José María Cumbreño e Martín López-Vega (traduções de Ruy Ventura)

 

 

ANTONIO RESECO GONZÁLEZ

(Villanueva de la Serena, 1973)

 

 

DE CIMA

 

Dir-se-ia

que não somos mais que forma,

um esquema traçado na ignorância,

um concerto de notas esquecidas.

 

Crescemos

tão rapidamente

que a ciência dirigiu seu rumo

para outro lado.

Nada é como acreditávamos,

nem a altura que alcançamos

nem a extensa visão é perspectiva.

 

De cima,

            que faremos

para voltarmos aos passos

já caminhados?

 

Olhar em frente

sem outra sombra

que a esperança

percorrida na memória,

uma sorte do destino

que jamais foi escrita.

 

(in Jardín Buscado, 2000)

 

 

 

 

ESPERANDO

 

Esperando perco sangue.

 

As oliveiras murcham

junto à estrada.

A morte aproxima-se

sigilosa das valetas.

 

O langor da vida

solta-se em cada nota

do piano invisível.

                             Persiste

a coruja no seu achado

de pequenos movimentos,

condenados.

                    Espantalhos

na sombra fogem

com os braços repletos de estrelas.

 

Aproxima-se o momento,

a noite toma vida.

 

Sangrando-me te espero.

 

(idem)

 

 

 

 

 

JOSÉ MARÍA CUMBREÑO

(Cáceres, 1972)

 

 

A ESTÁTUA DE SAL

 

 

                        E a roda resvala sem avançar,

                        resvala sem avançar...

                        Pablo García Baena

 

Foram-se as aves acostumadas

a fazer ninho na minha boca.

 

Descobriram por fim

que àquele tronco, retorcido e nocturno

no alto do cerro,

nunca sobem as serpentes.

 

Debaixo de chuva, Sodoma

conserva a pureza das piras apagadas.

 

Vejo cegos sentados em torno de um poço.

Vejo mulheres com o ventre

aberto pelo eclipse.

Vejo pães sem cozedura.

Vejo crianças que derramam

a sua saliva sobre os formigueiros.

Vejo tâmaras e nozes sobre uma mesa

onde não há comensais.

Vejo o rumor oculto das premonições.

Vejo a figueira, os cães.

Vejo o segredo, transparente e suave,

do veneno nas taças.

Vejo-me a mim mesma,

caminhando sem nada entender:

fugindo; simplesmente fugindo.

 

Não conhece a sombra o rosto do seu escravo

nem o fogo é rama que arda.

 

Nenhuma porta pode de todo cerrar-se,

porque não voltar não é não regressar.

 

Debaixo de chuva, Sodoma

vai devolvendo suas pedras como bosques ao fogo,

vai esquecendo, gota a gota,

o lugar a que as suas ruas conduziam.

 

Há dias em que ainda me pergunto

por que olhei para trás.

 

Talvez algo tenha assustado os burros.

Talvez Lot não me tenha ouvido.

Não me recordo.

 

Daqui, a planura recupera a sua dimensão

de fogueira e de cisterna,

de espaço onde as aves

se reúnem e iniciam o caminho até ao sul

para passarem outro inverno.

 

Chove.

 

Chove como se a água

pesasse mais que a pedra,

mais que o esforço do carro

atolado no lodo.

 

Chove.

 

Chove como se nada sobrevivesse

à chuva, como se esta chuva

levasse consigo

o que nem sequer o sal conseguiu tirar-me.

 

(in Las Ciudades da la Llanura, Editora Regional de Extremadura, 2000)

 

 

 

HERCULANO

 

Coloquei sobre a mesa

algumas nozes e escudelas com vinho quente.

Renovei as flores

nas ânforas de barro.

Mandei acender todas as lucernas,

perfumar a câmara com aroma de incenso.

Sem demora,

pedi em voz baixa que não me incomodassem,

que ninguém me interrompesse até à alvorada.

Até que amanhecesse.

 

Quando os meus escravos vierem

despertar-me

e me encontrarem sentado

frente à janela.

Sentado e em silêncio.

Quando, por acaso, os meus olhos longe distinguirem

a luz de sal do novo dia,

de um dia que não irá alumiá-los,

enquanto perguntam

meu senhor, a refeição

quanto tardará o efeito do veneno.

 

(idem)

 

 

 

 

 

MARTÍN LÓPEZ-VEGA

(Poo de Llanes, Astúrias, 1975)

 

 

CONSTRUÇÃO DA FELICIDADE

 

só com os andaimes da memória

se constrói a felicidade

 

constrói-se sustendo a tarde

com as cerejas incendiadas da infância

 

constrói-se erigindo contra o tempo

uma tarde uma só em Düsseldorf que foi vida

 

constrói-se substituindo esta praça vazia

pela piazza San Egidio no Trastevere

 

constrói-se substituindo o que a vida é

pelo que a vida foi

 

(in Árbol desconocido, Visor, 2002)

 

 

 

LARANJA

 

Alguém a deixou sobre a mesa do jardim, a laranja.

Agora é um símbolo da tarde, essa fruta

brilhando por entre o confuso calor deste fim de dia

luminoso como uma recordação amorosa da adolescência,

como a primeira laranja,

como as mãos que cheiram a laranja.

 

(Rodearam-na logo as formigas, esvoaçaram

em seu torno mil insectos, bailará a noite

em seu redor.) Mas agora essa laranja na tarde

supõe uma ordem, um sentido, o centro gravitacional do dia.

 

(idem)

 

 

 

CAMPOS DA HUNGRIA

 

O comboio atravessava a lenta calma

dos nevados campos da Hungria,

deixando para trás casas, vales, cemitérios,

e na minha frente uma formosa jovem ia lendo

e cantarolava uma misteriosa melodia.

Eu lia

esse poema de Gyula Juhász intitulado

“Anna örök”, Eterna Ana. E foi então que se uniram

naquele comboio as minhas recordações e as minhas ânsias,

atravessando os nevados campos da Hungria.

 

E hoje voltou a mim aquele momento

e não sei porquê, não sei.

 

(idem)

 

 

 

CABO VERDE

 

Iremos qualquer dia a Cabo Verde,

às suas tabernas do litoral que conhecemos

pelos poemas de Aguinaldo Fonseca,

onde tudo é salgado e nostálgico.

Tabernas que são navios encalhados

no meio da noite, putas abandonadas

entre os braços, amigo meu,

iremos qualquer dia a Cabo Verde.

 

Mindelo, Porto Novo, Ribeira Grande,

Palmeira, Curral Velho, Porto Inglês,

Cidade Velha,

 

iremos qualquer dia a Cabo Verde.

Iremos a essas tabernas onde o Tédio e a Nostalgia

entram agarrando os seus velhos cachimbos,

onde velhas cantoras cantam mornas

e o amor se mistura com a violência e com o esquecimento.

Porque, como Álvaro de Campos,

levamos dentro do coração

todos os lugares em que estivemos

e também aqueles em que não estivemos nunca.

E, como Ovídio Martins, trazemos dentro

todos os mares do mundo – especialmente

aqueles que têm vodka em vez de água.

 

Iremos a Cabo Verde, amigo meu,

iremos qualquer dia a Cabo Verde.

 

(idem)

 

 

(Traduções de Ruy Ventura)

 

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